quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Clarice é Clarice...

Tenho cabeça, coração e me respeito. Acredito em sonhos, não em utopia. Mas quando sonho, sonho alto. Estou aqui é pra viver, cair, aprender, levantar e seguir em frente. Sou isso hoje, amanhã já me reinventei. Sou complexa, sou mistura. Me perco, me procuro e me acho. E quando necessário, enlouqueço e deixo rolar. Não me doo pela metade, não sou tua meio amiga nem teu quase amor. Ou sou tudo ou sou nada. Não suporto meio termos.
                                                                                                                     Clarice Lispector

Quem conta um conto...



DONA LICINHA




   A

 senhora não me conhece. Faz tanto tempo e me lembro de detalhes do seu jeito, sua voz, seu penteado e roupas... A senhora ensinava na 3ª série B e eu era aluna da 3ª série C no Grupo Escolar do Tatuapé... Passava no corredor fazendo figa para mudar de classe, pra minha professora viajar e nunca mais voltar, pra diretora implicar e me mandar pra 3ª B... Nunca tive tanta inveja na minha como tive das crianças da série B...
            Lembro que na sua sala se ouviam risadas quase o tempo todo. Maior gostosura! De vez em quando, um enorme silêncio quebrado por uma voz suave... era hora de contar histórias. Suspirando, eu grudava na janela e escutava o que podia... Também muitos piques e hurras, brincadeiras correndo solto. Esconde-esconde, telefone-sem-fio, campeonato de Geografia. Tanto fazia a aprontação inventada. Importava era sentir a redonda contenteza dos alunos.
            A sua sala era colorida com desenhos das crianças, um painel com recortes de revistas e jornais, figurinhas bailando em fios pendurados, mapas e fotos... Uma lindeza em fios rodopiante mudada toda semana! Vi pela janela seus alunos fantasiados, pintados, emperucados, representando cenas da História do Brasil! Maior maravilhamento! Demorei, entendi. Quem nunca entendeu foi a minha professora... Seu segredo era ensinar brincando. Na descoberta! Na contenteza!
            Nunca ouvi berros, um “cala boca”, “aqui quem manda sou eu” e outras mansidões que a minha professora dizia sem cansar. Não escutei ameaças de provas de supetão, castigos, dobro da lição de casa, chamar a diretora, com que a minha professora me aterrorizava o tempo todo...
            Dona Licinha, eu quis tanto ser sua aluna quando fiz a 3ª série. Não fui... Hoje, tanto tempo depois, sou professora. Também duma 3ª série. Agora sou sua colega... Só não esqueço que queria estar na sua classe, seguir suas aulas risonhas, sem cobranças, sem chateações, sem forças barras, sem fazer engolir o desinteressante. Numa sala colorida, iluminada, brilhante. Também quero ser uma professora assim. Do seu jeito abraçante.
            Hoje, vi uma garotinha me espiando pela janela. Arrepiei. Senti que estava chegando num jeito legal de estar numa sala de aula... Por isso resolvi escrever para a senhora. Vontadona engolida por décadas. Tinha que dizer que continuo querendo muito ser aluna da dona Licinha. Agora, aluna de como ser professora. Fazendo meus alunos viverem surpresas inventivas. Um abraço apertado, cheinho de gostosuras, da Ciça.

Conto de Fanny Abramovich. Nova Escola

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