4. A animalização do homem em Vidas
Secas
Embora não se trate de temática
inédita, a análise da "animalização do homem" [11] em Vidas
Secas não se encontra, a nosso ver, inteiramente esgotada, mormente se
considerarmos as suas possíveis relações com o Direito. Nesse sentido, o exame
dessa questão em face da dignidade da pessoa humana, o qual pretendemos
concretizar, pode conduzir-nos a conclusões e interações ainda não pensadas,
hábeis, por isso, a demonstrar a riqueza dos escritos sob enfoque.
Mas o que seria essa animalização do
homem, tema tão correntemente atribuído à obra em referência? Do seu
significado, constante dos dicionários da língua portuguesa, já se pode ter uma
boa idéia do sentido pelo qual o vocábulo vem sendo utilizado. Do tradicional
Aurélio, vê-se que o verbo é sinônimo de tornar bruto, embrutecer, bestializar. Da Encyclopedia
e Diccionario Internacional,de W.M. Jackson (Inc. Editores, Rio de
Janeiro), citada por Rogério Lacaz-Ruiz [12], em artigo
específico sobre o tema, o verbete animalisar(sic) possui a
acepção de "Reduzir aos instintos, aos apetites, aos gostos do
animal." De se dizer, dessa forma, que o homem animalizado é
aquele que age instintivamente apenas, ou, coloquialmente, "de
impulso", sem qualquer racionalização sobre os seus atos. A animalização
é, pois, o embrutecimento, é o retorno à condição de animal.
Em Vidas Secas, são vários
os exemplos dessa verdadeira bestialização do ser humano. De início, basta
rememorar que durante toda a narrativa, são pouquíssimos os diálogos entre os
integrantes da família. Ao invés de conversas, a comunicação entre eles era
efetivada, sobretudo, por meio de gestos e sons guturais. No capítulo primeiro,
é bastante ilustrativa a seguinte passagem, vivenciada por sinha Vitória: "sinha
Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com sons
guturais que estavam perto" [13]. Mais a frente,
ainda no primeiro capítulo, outro bom exemplo pode ser retirado:
Resolvera de supetão aproveitá-lo como
alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não
podia deixa de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois
daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O
louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a
cachorra. [14]
Aqui, a sutiliza da crítica do autor
alagoano chega a ser genial: o papagaio da família somente imitava os latidos
da cachorra Baleia, pois esse era o único som regularmente ouvido na casa; a
comunicação, como já se disse, era extremamente escassa entre Fabiano, sinhá
Vitória e os dois meninos.
Noutro momento do livro, também
"protagonizado" por sinha Vitória, a animalização ainda é mais
descarada. Nessa ocasião, a personagem, com o intuito de se alimentar, lambe o
sangue de preá que ficara retido no focinho da cachorra Baleia, após o
abatimento, por esta, do roedor: "Levantaram-se todos gritando, o
menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sono. Sinha
Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado,
lambia o sangue e tirava proveito do beijo." [15]A
redução aos instintos, da qual se fez referência acima, é bastante evidenciada
nesse caso.
Mas é com Fabiano, o protagonista
de Vidas Secas, que a bestialização ressai mais explícita. No capítulo
segundo, como visto, a própria personagem se caracteriza como um animal: "Você
é bicho, Fabiano. Isso para ele era motivo de orgulho. Sim, senhor, um bicho,
capaz de vencer dificuldades" [16]. Já noutros
trechos, ele é equiparado a animais: "O corpo do vaqueiro derreava-se,
as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um
macaco" [17]. Ainda:"Vivia longe dos
homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não
sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a
ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro
entendia..." [18], e "Era um desgraçado,
era como um cachorro, só recebia ossos" [19].
Em contraste, mas como mais uma nítida
evidência da animalização do homem, a cadela Baleia é claramente humanizada
durante algumas passagens: "Quis latir, expressar oposição a tudo
aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda,
resignou-se ao capricho dos seus donos. A opinião dos meninos assemelhava-se à
dela [20]" e "Ela era como uma pessoa da
família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se
diferençavam..." [21]"Defronte do carro de
bois, faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente,
em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo [22]"Ao
retratar Baleia como um membro da família de retirantes, dotada, diversamente
dos demais, de uma série de atitudes humanas (como a demonstração de opinião e
o andar com apenas duas pernas), Graciliano somente reforça essa animalização
do homem, eis que coloca, em um mesmo nível, o animal de estimação da família e
a própria família. A humanização de Baleia não representa, assim, uma assunção
de consciência por sua parte ou uma elevação da sua condição animal. Significa,
lado outro, que ela estava no mesmo nível de seus "donos",
verdadeiros animais em Vidas Secas.
Que os familiares de Fabiano, e ele
próprio, são bestializados, reduzidos aos seus instintos, na obra de
Graciliano, entende-se, neste momento, já se tratar de uma clara evidência. A
análise da animalização não se completa, todavia, se não se perquiri por sua
razão. O que, afinal, isso quer significar? O que o autor pretendeu dizer ao
fazer tal crítica? A intenção, a nosso ver, foi, por intermédio de uma
exposição escancarada da conseqüência (a animalização), lançar luzes sobre a
respectiva causa (a forte exclusão social desse povo), realizando uma dura e
inteligente crítica social. A "animalização do homem" em Vidas
Secas não é outra coisa senão fruto da intensa exclusão social
vivenciada pelos retirantes nordestinos nela retratados (na obra).
Colocados em condições tão extremas de
vida, Fabiano e sua família precisam, antes de qualquer outra coisa,
preocupar-se em sobreviver. Simplesmente existir, antes de qualquer outra
coisa. Como tal, ante a realidade por eles vivenciada, era tarefa extremamente
difícil, a atenção a atitudes próprias do ser humano, como o planejar o futuro,
o interagir com os demais homens, o gostar/amar alguém, o constituir família, o
pensar sobre qual é profissão que lhe completa, o defender uma ideologia e o
próprio o refletir sobre sua posição na sociedade ficam relegadas a um segundo
plano (para não dizer a um terceiro, dado o elevado distanciamento), muito
atrás do sobreviver. De fato, não há como agir racionalmente – que é o que
diferencia o homem dos demais animais – se não se tem, antes, condições mínimas
de subsistência. O homem precisa, anteriormente a qualquer outra coisa, atender
as suas necessidades fisiológicas. Manter-se de pé, figurativamente. Por mais
que se difira dos demais animais, uma vez que é racional, o homem é um ser vivo
como todos os outros e, nessa condição, não prescinde do atendimento a
determinadas necessidades para subsistir. Se não as observa, o homem fica
estancado ali, na condição de mero animal, agindo instintivamente em busca de
meios para sobreviver. O homem socialmente excluído, assim, que não tem o
mínimo para sobreviver (leia-se comida e água), não consegue sair da condição
de animal. E é por isso que se pode dizer que o homem só pode ser homem (no
sentido antropológico e social da palavra) se ele não tem problemas sendo um
animal (ou seja, atende às necessidades físicas de sobrevivência).
Aqui reside a principal crítica de
Graciliano. Por meio dessa "animalização do homem" o autor demonstra
como é extrema a exclusão social dos retirantes. Não se trata, apenas, da
classe excluída, à margem, que não detém, temporariamente, ingerência sobre os
rumos da comunidade/sociedade da qual é parte integrante. Tampouco de uma
simplesmente menos favorecida, que não tem acesso a alguns serviços públicos,
mas que, ainda assim, possui condições de viver. Trata-se de um povo que não
tem sequer como manter-se de pé, eis que sequer possuem o que comer. E não
tendo o que comer, eles não podem fazer mais nada, inclusive, agir como homens
que são. Não podem, assim, lutar para sair dessa condição, brigar pelos seus
direitos, questionar a sua posição e toda a estrutura na qual estão
inseridos [23]. A exclusão é tamanha, quando o homem é
animalizado, que ele não tem quaisquer meios para tentar sair dessa
condição. É essa, pois, a crítica mais veemente em Vidas Secas: se ao
homem não são dadas condições mínimas de subsistência ele sequer pode agir como
homem; fica relegado à condição de animal.
A animalização do homem e a dignidade da pessoa humana
Ante as considerações realizadas na
seção anterior, outra relação, entre Literatura e Direito, não seria mais
oportuna em Vidas Secas que aquela existente entre a
"animalização do homem" e a dignidade da pessoa humana. Seja como for
tomada, como direito fundamental e/ou humano, princípio ou valor
fundante/estruturante do sistema jurídico, trata-se de mandamento jurídico de
extrema relevância, senão o mais importante. Conforme observa a doutrina
especializada, a exemplo do Min. Gilmar Ferreira Mendes [24], a
dignidade da pessoa humana está presente nos mais diversos textos jurídicos
ocidentais, principalmente naqueles de status constitucional, geralmente nos
seus preâmbulos. No Brasil, encontra-se prevista logo no art. 1º da sua
Constituição, como próprio fundamento do Estado que acabara de surgir.
Para muitos [25], entre
estudiosos e aplicadores do direito, cuida-se de direito/princípio/valor [26] bastante
criticável, eis que, de tão absoluto e geral (como é costumeiramente
qualificado), por vezes acaba desprovido de qualquer conteúdo, principalmente
quando levado a uma situação concreta – o que coloca em cheque a sua própria
efetividade (considerado como norma jurídica). Mas é provavelmente em razão
disso, como nota o acima mencionado autor, que se tem feito um tão grande
esforço, tanto em terras brasileiras, quanto internacionais, em fazer aplicável
a o preceito que traz inserto em seu bojo (a dignidade da pessoa humana).
Mas o que é esse verdadeiro fundamento
da República Federativa do Brasil? Em termos melhores: o que diz esse
direito/princípio/valor? Que garantias traz? Em poucas palavras, pode-se dizer
que a dignidade da pessoa humana, peça estruturante do sistema jurídico
brasileiro, é que concede unidade aos direitos e garantias
fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Afasta, ademais, a
prevalência de concepções transpersonalistas de Estado sobre as liberdades
individuais [27]. Segundo Alexandre de Moraes, que nos oferece
conceituação bastante completa:
[...] é um valor espiritual e moral
inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação
consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao
respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável
que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente
excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos
fundamentais, mas sempre sem menos prezar a necessária estima que merecem todas
as pessoas quanto seres humanos [...] [28].
É, em suma, direito, princípio ou valor
pelo (s) qual (is) é assegurada, a toda pessoa humana, a possibilidade de sê-la
em toda sua plenitude. Respeitar a dignidade da pessoa humana é, pois,
respeitar a natureza do homem, com suas necessidades, questionamentos,
angústias e anseios, sem impor quaisquer limitações injustificadas.
Dessas considerações, percebe-se, com
nitidez, o imenso valor jurídico da obra em questão: Vidas Secas traz,
consigo, por meio da descrição da interação do retirante nordestino com outros
integrantes da Sociedade e com a terra, em tempos de extrema seca, uma clara e
lúcida definição da dignidade da pessoa humana. E o faz por meio da
demonstração do seu malferimento, da sua completa violação: expõe-na na total
ausência de dignidade (no sentido ora trabalhado) de que padecem Fabiano e sua
família, que não têm, como já se viu, as suas características de seres humanos
respeitadas, sendo transformados em verdadeiros animais, embrutecidos,
bestializados. Pode-se dizer, inclusive, que, na exemplificação que
promove, Vidas Secas possibilita uma compreensão mais clara da
dignidade da pessoa humana do que qualquer conceituação abstrata (própria,
vezes da norma jurídica, outras muitas vezes da doutrina especializada),
poderia oferecer. Fá-lo, pois demonstra o que é a ausência de dignidade humana,
que, de tão grave, violenta e intensa, evidencia, de forma muito mais nítida, o
seu real significado. Essa obra de Graciliano Ramos funciona, assim,
como verdadeiro veículo do direito, eis que, além de permitir a sua melhor
apreensão, ajuda a desenvolvê-lo, passando a integrá-lo.
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