terça-feira, 9 de junho de 2015

A animalização do homem em Vidas Secas

4. A animalização do homem em Vidas Secas
Embora não se trate de temática inédita, a análise da "animalização do homem" [11] em Vidas Secas não se encontra, a nosso ver, inteiramente esgotada, mormente se considerarmos as suas possíveis relações com o Direito. Nesse sentido, o exame dessa questão em face da dignidade da pessoa humana, o qual pretendemos concretizar, pode conduzir-nos a conclusões e interações ainda não pensadas, hábeis, por isso, a demonstrar a riqueza dos escritos sob enfoque.
Mas o que seria essa animalização do homem, tema tão correntemente atribuído à obra em referência? Do seu significado, constante dos dicionários da língua portuguesa, já se pode ter uma boa idéia do sentido pelo qual o vocábulo vem sendo utilizado. Do tradicional Aurélio, vê-se que o verbo é sinônimo de tornar bruto, embrutecer, bestializar. Da Encyclopedia e Diccionario Internacional,de W.M. Jackson (Inc. Editores, Rio de Janeiro), citada por Rogério Lacaz-Ruiz [12], em artigo específico sobre o tema, o verbete animalisar(sic) possui a acepção de "Reduzir aos instintos, aos apetites, aos gostos do animal." De se dizer, dessa forma, que o homem animalizado é aquele que age instintivamente apenas, ou, coloquialmente, "de impulso", sem qualquer racionalização sobre os seus atos. A animalização é, pois, o embrutecimento, é o retorno à condição de animal.
Em Vidas Secas, são vários os exemplos dessa verdadeira bestialização do ser humano. De início, basta rememorar que durante toda a narrativa, são pouquíssimos os diálogos entre os integrantes da família. Ao invés de conversas, a comunicação entre eles era efetivada, sobretudo, por meio de gestos e sons guturais. No capítulo primeiro, é bastante ilustrativa a seguinte passagem, vivenciada por sinha Vitória: "sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com sons guturais que estavam perto" [13]Mais a frente, ainda no primeiro capítulo, outro bom exemplo pode ser retirado:
Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixa de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra. [14]
Aqui, a sutiliza da crítica do autor alagoano chega a ser genial: o papagaio da família somente imitava os latidos da cachorra Baleia, pois esse era o único som regularmente ouvido na casa; a comunicação, como já se disse, era extremamente escassa entre Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.
Noutro momento do livro, também "protagonizado" por sinha Vitória, a animalização ainda é mais descarada. Nessa ocasião, a personagem, com o intuito de se alimentar, lambe o sangue de preá que ficara retido no focinho da cachorra Baleia, após o abatimento, por esta, do roedor: "Levantaram-se todos gritando, o menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sono. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo." [15]A redução aos instintos, da qual se fez referência acima, é bastante evidenciada nesse caso.
Mas é com Fabiano, o protagonista de Vidas Secas, que a bestialização ressai mais explícita. No capítulo segundo, como visto, a própria personagem se caracteriza como um animal: "Você é bicho, Fabiano. Isso para ele era motivo de orgulho. Sim, senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades" [16]. Já noutros trechos, ele é equiparado a animais: "O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco" [17]Ainda:"Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia..." [18]e "Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos" [19].
Em contraste, mas como mais uma nítida evidência da animalização do homem, a cadela Baleia é claramente humanizada durante algumas passagens: "Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos. A opinião dos meninos assemelhava-se à dela [20]" e "Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam..." [21]"Defronte do carro de bois, faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo [22]"Ao retratar Baleia como um membro da família de retirantes, dotada, diversamente dos demais, de uma série de atitudes humanas (como a demonstração de opinião e o andar com apenas duas pernas), Graciliano somente reforça essa animalização do homem, eis que coloca, em um mesmo nível, o animal de estimação da família e a própria família. A humanização de Baleia não representa, assim, uma assunção de consciência por sua parte ou uma elevação da sua condição animal. Significa, lado outro, que ela estava no mesmo nível de seus "donos", verdadeiros animais em Vidas Secas.
Que os familiares de Fabiano, e ele próprio, são bestializados, reduzidos aos seus instintos, na obra de Graciliano, entende-se, neste momento, já se tratar de uma clara evidência. A análise da animalização não se completa, todavia, se não se perquiri por sua razão. O que, afinal, isso quer significar? O que o autor pretendeu dizer ao fazer tal crítica? A intenção, a nosso ver, foi, por intermédio de uma exposição escancarada da conseqüência (a animalização), lançar luzes sobre a respectiva causa (a forte exclusão social desse povo), realizando uma dura e inteligente crítica social. A "animalização do homem" em Vidas Secas não é outra coisa senão fruto da intensa exclusão social vivenciada pelos retirantes nordestinos nela retratados (na obra).
Colocados em condições tão extremas de vida, Fabiano e sua família precisam, antes de qualquer outra coisa, preocupar-se em sobreviver. Simplesmente existir, antes de qualquer outra coisa. Como tal, ante a realidade por eles vivenciada, era tarefa extremamente difícil, a atenção a atitudes próprias do ser humano, como o planejar o futuro, o interagir com os demais homens, o gostar/amar alguém, o constituir família, o pensar sobre qual é profissão que lhe completa, o defender uma ideologia e o próprio o refletir sobre sua posição na sociedade ficam relegadas a um segundo plano (para não dizer a um terceiro, dado o elevado distanciamento), muito atrás do sobreviver. De fato, não há como agir racionalmente – que é o que diferencia o homem dos demais animais – se não se tem, antes, condições mínimas de subsistência. O homem precisa, anteriormente a qualquer outra coisa, atender as suas necessidades fisiológicas. Manter-se de pé, figurativamente. Por mais que se difira dos demais animais, uma vez que é racional, o homem é um ser vivo como todos os outros e, nessa condição, não prescinde do atendimento a determinadas necessidades para subsistir. Se não as observa, o homem fica estancado ali, na condição de mero animal, agindo instintivamente em busca de meios para sobreviver. O homem socialmente excluído, assim, que não tem o mínimo para sobreviver (leia-se comida e água), não consegue sair da condição de animal. E é por isso que se pode dizer que o homem só pode ser homem (no sentido antropológico e social da palavra) se ele não tem problemas sendo um animal (ou seja, atende às necessidades físicas de sobrevivência).
Aqui reside a principal crítica de Graciliano. Por meio dessa "animalização do homem" o autor demonstra como é extrema a exclusão social dos retirantes. Não se trata, apenas, da classe excluída, à margem, que não detém, temporariamente, ingerência sobre os rumos da comunidade/sociedade da qual é parte integrante. Tampouco de uma simplesmente menos favorecida, que não tem acesso a alguns serviços públicos, mas que, ainda assim, possui condições de viver. Trata-se de um povo que não tem sequer como manter-se de pé, eis que sequer possuem o que comer. E não tendo o que comer, eles não podem fazer mais nada, inclusive, agir como homens que são. Não podem, assim, lutar para sair dessa condição, brigar pelos seus direitos, questionar a sua posição e toda a estrutura na qual estão inseridos [23]. A exclusão é tamanha, quando o homem é animalizado, que ele não tem quaisquer meios para tentar sair dessa condição. É essa, pois, a crítica mais veemente em Vidas Secas: se ao homem não são dadas condições mínimas de subsistência ele sequer pode agir como homem; fica relegado à condição de animal.


A animalização do homem e a dignidade da pessoa humana

Ante as considerações realizadas na seção anterior, outra relação, entre Literatura e Direito, não seria mais oportuna em Vidas Secas que aquela existente entre a "animalização do homem" e a dignidade da pessoa humana. Seja como for tomada, como direito fundamental e/ou humano, princípio ou valor fundante/estruturante do sistema jurídico, trata-se de mandamento jurídico de extrema relevância, senão o mais importante. Conforme observa a doutrina especializada, a exemplo do Min. Gilmar Ferreira Mendes [24], a dignidade da pessoa humana está presente nos mais diversos textos jurídicos ocidentais, principalmente naqueles de status constitucional, geralmente nos seus preâmbulos. No Brasil, encontra-se prevista logo no art. 1º da sua Constituição, como próprio fundamento do Estado que acabara de surgir.
Para muitos [25], entre estudiosos e aplicadores do direito, cuida-se de direito/princípio/valor [26] bastante criticável, eis que, de tão absoluto e geral (como é costumeiramente qualificado), por vezes acaba desprovido de qualquer conteúdo, principalmente quando levado a uma situação concreta – o que coloca em cheque a sua própria efetividade (considerado como norma jurídica). Mas é provavelmente em razão disso, como nota o acima mencionado autor, que se tem feito um tão grande esforço, tanto em terras brasileiras, quanto internacionais, em fazer aplicável a o preceito que traz inserto em seu bojo (a dignidade da pessoa humana).
Mas o que é esse verdadeiro fundamento da República Federativa do Brasil? Em termos melhores: o que diz esse direito/princípio/valor? Que garantias traz? Em poucas palavras, pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana, peça estruturante do sistema jurídico brasileiro, é que concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Afasta, ademais, a prevalência de concepções transpersonalistas de Estado sobre as liberdades individuais [27]. Segundo Alexandre de Moraes, que nos oferece conceituação bastante completa:
[...] é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menos prezar a necessária estima que merecem todas as pessoas quanto seres humanos [...] [28].
É, em suma, direito, princípio ou valor pelo (s) qual (is) é assegurada, a toda pessoa humana, a possibilidade de sê-la em toda sua plenitude. Respeitar a dignidade da pessoa humana é, pois, respeitar a natureza do homem, com suas necessidades, questionamentos, angústias e anseios, sem impor quaisquer limitações injustificadas.

Dessas considerações, percebe-se, com nitidez, o imenso valor jurídico da obra em questão: Vidas Secas traz, consigo, por meio da descrição da interação do retirante nordestino com outros integrantes da Sociedade e com a terra, em tempos de extrema seca, uma clara e lúcida definição da dignidade da pessoa humana. E o faz por meio da demonstração do seu malferimento, da sua completa violação: expõe-na na total ausência de dignidade (no sentido ora trabalhado) de que padecem Fabiano e sua família, que não têm, como já se viu, as suas características de seres humanos respeitadas, sendo transformados em verdadeiros animais, embrutecidos, bestializados. Pode-se dizer, inclusive, que, na exemplificação que promove, Vidas Secas possibilita uma compreensão mais clara da dignidade da pessoa humana do que qualquer conceituação abstrata (própria, vezes da norma jurídica, outras muitas vezes da doutrina especializada), poderia oferecer. Fá-lo, pois demonstra o que é a ausência de dignidade humana, que, de tão grave, violenta e intensa, evidencia, de forma muito mais nítida, o seu real significado. Essa obra de Graciliano Ramos funciona, assim, como verdadeiro veículo do direito, eis que, além de permitir a sua melhor apreensão, ajuda a desenvolvê-lo, passando a integrá-lo.

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