sábado, 17 de outubro de 2015

Devaneio e embriaguez de uma rapariga - Clarice Lispector

Devaneio e embriaguez de uma rapariga

Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os eléctricos, a estremecerem-lhe a imagem reflectida. Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tar­de. Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos. Cá fora, duma janela mais alta, caiu à rua uma cousa pesada e fofa. Se os miúdos e o mari­do estivessem à casa, já lhe viria à ideia que seria descuido deles. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente tra­balhava meditativo, o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas.
«A Noite!», gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo, e alguma cousa arrepiou-se pressagiada. Jo­gou o pente à penteadeira, cantou absorta: «Quem viu o pardalzito... passou pela janela... voou pr'além do Minho!» — mas, colérica, fechou-se dura como um leque.
Deitou-se, abanava-se impaciente com um jornal a far­falhar no quarto. Pegou o lenço, aspirava-o a comprimir o bordado áspero com os dedos avermelhados. Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a rir. Te­ve a visão de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu mais fechando os olhos, a abanar-se mais profunda­mente. Ai, ai, vinha da rua como uma borboleta.
«Bons dias, sabes quem veio a me procurar cá à casa?», pensou como assunto possível e interessante de palestra. «Pois não sei, quem?», perguntaram-lhe com um sorriso galanteador, uns olhos tristes numa dessas caras pálidas que a uma pessoa fazem tanto mal. «A Maria Quitéria, ho­mem!», respondeu garrida, de mão à ilharga. «E se mo per­mite, quem é esta rapariga?», insistiu galante, mas já agora sem fisionomia. «Tu!», cortou ela com leve rancor a pales­tra, que chatura.
Ai que quarto suculento!, ela se abanava no Brasil. O sol preso pelas persianas tremia na parede como uma gui­tarra. A Rua do Riachuelo sacudia-se ao peso arquejante dos eléctricos que vinham da Rua Mem de Sá. Ela ouvia curiosa e entediada o estremecimento do guarda-loiça na sa­la das visitas. D'impaciência, virou-se-lhe o corpo de bru­ços, e enquanto estava a esticar com amor os dedos dos pés pequeninos, aguardava seu próprio pensamento com os olhos abertos. «Quem encontrou, buscou», disse-se em for­ma de rifão rimado, o que sempre terminava por parecer com alguma verdade. Até que adormeceu com a boca aber­ta, a baba a humedecer-lhe o travesseiro.
Só acordou com o marido a voltar do trabalho e a en­trar pelo quarto adentro. Não quis jantar nem sair de seus cuidados, dormiu de novo: o homem lá que se regalasse com as sobras do almoço.
E já que os filhos estavam na quinta das titias em Jacarepaguá, ela aproveitou para amanhecer esquisita: túrbida e leve na cama, um desses caprichos, sabe-se lá. O marido apareceu-lhe já trajado e ela nem sabia o que o homem fi­zera para o seu pequeno-almoço, e nem olhou-lhe o fato, se estava ou não por escovar, pouco se lhe importava se hoje era dia de ele tratar os negócios na cidade. Mas quando ele se inclinou para beijá-la, sua leveza crepitou como folha se­ca:
— Larga-te daí!
— E o que tens?, pergunta-lhe o homem atónito, a en­saiar imediatamente carinho mais eficaz.
Obstinada, ela não saberia responder, estava tão rasa e princesa que não tinha sequer onde se lhe buscar urna res­posta. Zangou-se:
— Ai que não me maces! Não me venhas a rondar como um galo velho!
Ele pareceu pensar melhor e declarou:
— Ó rapariga, estás doente.
Ela aceitou surpreendida, lisonjeada. Durante o dia in­teiro ficou-se na cama, a ouvir a casa tão silenciosa sem o bulício dos miúdos, sem o homem que hoje comeria seus cozidos pela cidade. Durante o dia inteiro ficou-se à cama. Sua cólera era ténue, ardente. Só se levantava mesmo para ir à casa de banhos, donde voltava nobre, ofendida.
A manhã tornou-se uma longa tarde inflada que se tor­nou noite sem fundo amanhecendo inocente pela casa toda.
Ela, ainda à cama, tranquila, improvisada. Ela amava... Estava previamente a amar o homem que um dia ela ia amar. Quem sabe lá, isso às vezes acontecia, e sem culpas nem danos para nenhum dos dois. Na cama a pensar, a pensar, quase a rir como a uma bisbilhotice. A pensar, a pensar. O quê? Ora, lá ela sabia. Assim deixou-se ficar.
Dum momento para outro, com raiva, estava de pé. Mas nas fraquezas do primeiro instante parecia doída e de­licada no quarto que rodava, que rodava até ela conseguir às apalpadelas deitar-se de novo à cama, surpreendida de que talvez fosse verdade: «Ó mulher, vê lá se me vais mes­mo adoecer!», disse desconfiada. Levou a mão à testa para ver se lhe tinham vindo febres.
Nessa noite, até dormir, fantasticou, fantasticou: por quantos minutos?, até que tombou: adormecidona, a resso­nar com o marido.
Acordou com o dia atrasado, as batatas por descascar, os miúdos que voltariam à tarde das titias, ai que até me faltei ao respeito!, dia de lavar roupa e serzir as peúgas, ai que vagabunda que me saíste!, censurou-se curiosa e satis­feita, ir às compras, não esquecer o peixe, o dia atrasado, a manhã pressurosa de sol.
Mas no sábado à noite foram à tasca da Praça Tiradentes a atenderem ao convite do negociante tão próspero, ela com vestidito novo que se não era cheio d'enfeites era de bom pano superior, desses que lhe iam a durar pela vida afora. No sábado à noite, embriagada na Praça Tiradentes, embriagada mas com o marido ao lado a garanti-la, e ela cerimoniosa diante do outro homem tão mais fino e rico, procurando dar-lhes palestras, pois que ela não era nenhu­ma parola d'aldeia e já vivera em capital. Mas borrachona a mais não poder.
E se seu marido não estava borracho é que não queria faltar ao respeito ao negociante, e, cheio d'empenho e d'humildade, deixava-lhe, ao outro, o cantar de galo. O que as­sentava bem para a ocasião fina, mas lhe punha, a ela, uma dessas vontades de rir!, um desses desprezos!, olhava o ma­rido metido no fato novo e achava-lhe uma tal piada! Bor­rachona a mais não poder mas sem perder o brio de rapari­ga. E o vinho verde a esvaziar-se-lhe do copo.
E quando estava embriagada, como num ajantarado far­to de domingo, tudo o que pela própria natureza é separado um do outro — cheiro d'azeite dum lado, homem doutro, terrina dum lado, criado de mesa doutro — unia-se esquisi­tamente pela própria natureza, e tudo não passava duma sem-vergonhice só, duma só marotagem.
E se lhe estavam brilhantes e duros os olhos, se seus ges­tos eram etapas difíceis até conseguir enfim atingir o palitei­ro, em verdade por dentro estava-se até lá muito bem, era-se aquela nuvem plena a se transladar sem esforço. Os lábios engrossados e os dentes brancos, e o vinho a inchá-la. E aquela vaidade de estar embriagada a facilitar-lhe um tal desdém por tudo, a torná-la madura e redonda como uma grande vaca.
Naturalmente que ela palestrava. Pois que lhe não falta­vam os assuntos nem as capacidades. Mas as palavras que uma pessoa pronunciava quando estava embriagada era co­mo se estivesse prenhe — palavras apenas na boca, que pouco tinham a ver com o centro secreto que era como uma gravidez. Ai que esquisita estava. No sábado à noite a alma diária perdida, e que bom perdê-la, e como lembrança dos outros dias apenas as mãos pequenas tão maltratadas — e ela agora com os cotovelos sobre a toalha de xadrez verme­lho e branco da mesa como sobre uma mesa de jogo, pro­fundamente lançada numa vida baixa e revolucionante. E esta gargalhada? Essa gargalhada que lhe estava a sair misteriosamente duma garganta cheia e branca, em resposta à finura do negociante, gargalhada vinda da profundeza da­quele sono, e da profundeza daquela segurança de quem tem um corpo. Sua carne alva estava doce como a de uma lagosta, as pernas duma lagosta viva e a se mexer devagar no ar. E aquela vontade de se sentir mal para aprofundar a doçura em bem ruim. E aquela maldadezita de quem tem um corpo.
Palestrava, e ouvia com curiosidade o que ela mesma es­tava a responder ao negociante abastado que, em tão boa hora, os convidara e pagava-lhes o pasto. Ouvia intrigada e deslumbrada o que ela mesma estava a responder: o que dissesse nesse estado valeria para o futuro em augúrio — já agora ela não era lagosta, era um duro signo: escorpião. Pois que nascera em Novembro.
Um holofote enquanto se dorme que percorre a madru­gada — tal era a sua embriaguez errando lenta pelas altu­ras.
Ao mesmo tempo, que sensibilidade!, mas que sensibili­dade!, quando olhava o quadro tão bem pintado do restau­rante ficava logo com sensibilidade artística. Ninguém lhe tiraria cá das ideias que nascera mesmo para outras coisas. Ela sempre fora pelas obras d'arte.
Mas que sensibilidade!, agora não apenas por causa do quadro de uvas e peras e peixe morto brilhando nas esca­mas. Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebrada. E se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adian­te: porque era protegida por uma situação, protegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida. Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua desgraça. Ai que infeliz que sou, minha mãe. Se quisesse podia deitar ainda mais vinho no copo e, protegida pela posição que alcançara na vida, emborrachar-se ainda mais, contanto que não per­desse o brio. E assim, mais emborrachada ainda, percorria os olhos pelo restaurante, e que desprezo pelas pessoas se­cas do restaurante, nenhum homem que fosse homem a va­ler, que fosse triste mesmo. Que desprezo pelas pessoas se­cas do restaurante, enquanto ela estava grossa e pesada, ge­nerosa a mais não poder. E tudo no restaurante tão distante um do outro como se jamais um pudesse falar com o outro. Cada um por si, e lá Deus por toda a gente.
Seus olhos de novo fitaram aquela rapariga que, já d'entrada, lhe fizera subir a mostarda ao nariz. Logo d'entrada percebera-a sentada a uma mesa com seu homem, to­da cheia dos chapéus e d'ornatos, loira como um escudo falso, toda santarrona e fina — que rico chapéu que ti­nha! —, vai ver que nem casada era, e a ostentar aquele ar de santa. E com seu rico chapéu bem-posto. Pois que bem lhe aproveitasse a beatice!, e que se não lhe entornasse a fi­dalguia na sopa! As mais santazitas era as que mais cheias estavam de patifaria. E o criado de mesa, o grande parvo, a servi-la cheio das atenções, o finório: e o homem amarelo que a acompanhava a fazer vistas grossas. E a santarrona toda vaidosa de seu chapéu, toda modesta de sua cinturita fina, vai ver que não era capaz de parir-lhe, ao seu homem, um filho. Ai que não tinha nada a ver com isso, a bem di­zer: mas já d'entrada crescera-lhe a vontade d'ir e d'encher-lhe, à cara de santa loira da rapariga, uns bons sopapos, a fidalguia de chapéu. Que nem roliça era, era chata de peito. E vai ver que, com todos os seus chapéus, não passava du­ma vendeira d'hortaliça a se fazer passar por grande dama.
Oh, como estava humilhada por ter vindo à tasca sem chapéu, a cabeça agora parecia-lhe nua. E a outra com seus ares de senhora, a fingir de delicada. Bem sei o que te falta, fidalguita, e ao teu homem amarelo! E se pensas que t'invejo e ao teu peito chato, fica a saber que me ralo, que bem me ralo de teus chapéus. A patifas sem brio como tu, a se fazerem de rogadas, eu lhas encho de sopapos.
Na sua sagrada cólera, estendeu com dificuldade a mão e tomou um palito.
Mas finalmente a dificuldade de chegar em casa desapa­receu: remexia-se agora dentro da realidade familiar de seu quarto, agora sentada no bordo de sua cama com a chinela a se balançar no pé.
E, como entrefechara os olhos toldados, tudo ficou de carne, o pé da cama de carne, a janela de carne, na cadeira o fato de carne que o marido jogara, e tudo quase doía. E ela cada vez maior, vacilante, túmida, gigantesca. Se con­seguisse chegar mais perto de si mesma, ver-se-ia inda maior. Cada braço seu poderia ser percorrido por uma pes­soa, na ignorância de que se tratava de um braço, e em ca­da olho podia-se-lhe mergulhar dentro e nadar sem saber que era um olho. E ao redor tudo a doer um pouco. As coi­sas feitas de carne com nevralgia. Fora o friozito que a to­mara ao sair da casa de pasto.
Estava sentada à cama, conformada, céptica.
E isso ainda não era nada, só Deus sabia: ela sabia mui­to bem que isso inda não era nada. Que nesse momento lhe estavam a acontecer cousas que só mais tarde iriam a doer mesmo e a valer: quando ela voltasse ao seu tamanho co­mum, o corpo anestesiado estaria a acordar latejando e ela iria a pagar pelas comilanças e vinhos.
Então, já que isso terminaria mesmo por acontecer, tan­to se me faz abrir agora mesmo os olhos, o que fez, e tudo ficou menor e mais nítido, embora sem nenhuma dor. Tu­do, no fundo, estava igual, só que menor e familiar. Estava sentada bem tesa na sua cama, o estômago tão cheio, ab­sorta, resignada, com a delicadeza de quem espera sentado que outro acorde. "Empanturraste e eu que pague o pato", disse-se melancólica, a olhar os deditos brancos do pé. Olhava ao redor, paciente, obediente. Ai, palavras, pala­vras, objectos do quarto alinhados em ordem de palavras a formarem aquelas frases turvas e maçantes que quem souber ler lerá. Aborrecimento, aborrecimento, ai que chatura. Que maçada. Enfim, ai de mim, seja lá o que Deus bem quiser. Que é que se havia de fazer. Ai, é uma tal coisa que se me dá que nem bem sei dizer. Enfim, seja lá bem o que Deus quiser. E dizer que se divertira tanto esta noite!, e di­zer que fora tão bom, e a gosto seu o restaurante, ela senta­da fina à mesa. Mesa!, gritou-lhe o mundo. Mas ela nem sequer a responder-lhe, a alçar os ombros com um muxoxo amuado, importunada, que não me venhas a maçar com ca­rinhos; desiludida, resignada, empanturrada, casada, con­tente, a vaga náusea.
Foi nesse instante que ficou surda: faltou-lhe um senti­do. Enviou à orelha uma tapona de mão espalmada, o que só fez entornar mais o caldo: pois encheu-se-lhe o ouvido de um rumor de elevador, a vida de repente sonora e au­mentada nos menores movimentos. Das duas, uma: estava surda ou ouvir de mais — reagiu a essa nova solicitação com uma sensação maliciosa e incómoda, com um suspiro de saciedade conformada. Prós raios que os partam, disse suave, aniquilada.
"E quando no restaurante...", lembrou-se de repente. Quando estivera no restaurante o protector do marido en­costara ao seu pé um pé em baixo da mesa, e por cima da mesa a cara dele. Porque calhara ou de propósito? O mafarrico. Uma pessoa, a falar verdade, que era lá bem inte­ressante. Alçou os ombros.
E quando no seu decote redondo — em plena Praça Tiradentes!, pensou ela abanar a cabeça incrédula — a mosca se lhe pousara na pele nua? Ai que malícia.
Havia certas cousas boas porque era quase nauseantes: o ruído como de elevador no sangue, enquanto o homem ron­cava ao lado, os filhos gorditos empilhados no outro quarto a dormirem, os desgraçadinhos. Ai que cousa que se me dá!, pensou desesperada. Teria comido de mais?, ai que cousa que se me dá, minha santa mãe!
Era a tristeza.
Os dedos do pé a brincarem com a chinela. O chão lá não muito limpo. Que relaxada e preguiçosa que me saíste. Amanhã não, porque não estaria lá muito bem das pernas. Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver: dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão que se lhe arranca­riam as sujidades todas!, a casa havia de ver!, ameaçou ela colérica. Ai que se sentia tão bem, tão áspera, como se ain­da estivesse a ter leite nas mamas, tão forte. Quando o ami­go do marido a viu tão bonita e gorda ficou logo com res­peito por ela. E quando ela ficava a se envergonhar não sa­bia onde havia de fitar os olhos. Ai que tristeza. Que é que se há de fazer. Sentada no bordo da cama, a pestanejar re­signada. Que bem que se via a Lua nessas noites de Verão. Inclinou-se um pouquito, desinteressada, resignada. A Lua. Que bem que se via. A Lua alta e amarela a deslizar pelo céu, a coitadita. A deslizar, a deslizar... Alta, alta. A Lua. Então a grosseria explodiu-lhe em súbito amor; cadela, dis­se a rir.

Clarice Lispector, In Laços de Família

terça-feira, 8 de setembro de 2015

A hora da estrela

              A hora da estrela de Clarice Lispector fala de uma nordestina que veio para o Rio de Janeiro em busca de trabalho e uma nova vida, porém, Macabéa que a protagonista da história que é narrada por Rodrigo S.M. descreve a personagem como feia, fedorenta, não tinha estilo, cabelos embaralhados e a única coisa que sabia fazer bem era datilografar. Assim, conseguiu um emprego em que o patrão sempre falava sobre sua higiene para com os papéis, pois comia perto dos papéis e pegava-os com as mãos sujas, apesar das reclamações não tinha jeito. O título da obra é importante exatamente no final em que Macabéa é atropelada e naquele momento vira uma estrela.


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domingo, 23 de agosto de 2015

Estatuto da Pessoa com Deficiência: Marco na defesa dos direitos, ele abre outros debates. Vamos ler meu povo!

Estatuto da Pessoa com Deficiência: Marco na defesa dos direitos, ele abre outros debates

Uma pessoa que use cadeira de rodas tem dificuldades de andar na calçada ou de pegar um táxi. Um deficiente auditivo não consegue se comunicar no atendimento por voz de bancos, empresas e serviços públicos. Um cego depende da ajuda de outras pessoas para pegar ônibus ou, caso precise usar um computador, nem sempre encontra lan houses bem equipadas.
Esses são exemplos simples, do dia a dia, dos obstáculos que pessoas com diferentes tipos de deficiência enfrentam no Brasil. Segundo o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país tem 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, ou seja, cerca de 24% da população brasileira.
Para reduzir a falta de acessibilidade a essas pessoas, a presidente Dilma Rousseff sancionou, em julho de 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei Nacional Nº13.146). Trata-se de um conjunto de leis que garantem benefícios e medidas para maior igualdade e para inclusão na sociedade de pessoas com deficiência. A previsão é que as leis entrem em vigor em janeiro de 2016.
Esse é mais um passo do Brasil para promover avanços na legislação sobre o tema. Entre exemplos anteriores estão a Lei 7.853, de 1989, que caracterizou como crime a discriminação de pessoa com deficiência no trabalho, a Lei 8.213, de 1991, chamada de Lei de Cotas, que criou metas obrigatórias de contratação para empresas com 100 ou mais funcionários e a ratificação pelo Brasil, em 2008, da Convenção sobre os Direitos das da Pessoa com Deficiência, aprovada pela ONU (Organização das Nações Unidas).
No entanto, entidades ligadas à causa argumentam que nem tudo o que foi previsto nessas legislações foi concretizado na prática, um desafio que agora pertence ao Estatuto cumprir.
O novo documento (Estatuto) é considerado por especialistas como um dos mais avançados do mundo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência (veja os principais avanços abaixo). Mas nem todos os pontos do estatuto foram totalmente aceitos.
Logo após a aprovação do documento, a Confenen (Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no STF contra o Artigo 28 do Estatuto, que proíbe a cobrança de “valores adicionais de qualquer natureza” nas mensalidades e matrículas de crianças e adolescentes com deficiência em escolas privadas.
Encerrar a cobrança extra dos alunos e a igualdade de condições de acesso do deficiente era uma bandeira de pais e mães que já haviam se mobilizado através de um abaixo-assinado. Para os pais, a convivência dos filhos com necessidades especiais com outros alunos e no sistema convencional é benéfico para a inclusão social e as escolas devem estar preparadas para essas situações.
Do lado das escolas, o argumento é que receber alunos com necessidades especiais gera gastos com equipamentos, recursos didáticos e arquitetônicos, acompanhantes ou professores especializados, pois é preciso adequar a tanto a estrutura física quanto a pedagógica. Há ainda os que defendem a cobrança igualitária e entendem que os custos devem ser distribuídos entre todos os alunos.
Entre as medidas de ensino inclusivo previsto no Estatuto estão a oferta de ensino da Libras, do Sistema Braille e de formatos acessíveis de provas e a oferta de profissionais de apoio escolar para atender e ampliar as habilidades funcionais dos estudantes.
Hoje o Distrito Federal é a única unidade da Federação a proibir a cobrança de taxas extras em mensalidades de crianças com deficiência. Já em relação às escolas públicas, a Constituição prevê como dever do Estado o atendimento educacional aos portadores de necessidade especiais, seja em instituições exclusivas ou em escolas regulares.
Segundo relatório de 2013 do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), crianças com deficiência têm menos oportunidades e menos acesso a educação que as demais no Brasil. O Censo do IBGE aponta que em 2010, 37% das crianças com deficiência intelectual na idade escolar obrigatória por lei (6 a 14 anos) estavam foram da escola, número muito superior à média nacional, de 4,2%.
Apesar das dificuldades, a presença cada vez maior de alunos com deficiência física ou intelectual no sistema educacional convencional já é uma realidade no Brasil. O Censo Escolar aponta que entre 2005 e 2011, as matrículas de crianças e jovens com algum tipo de deficiência (intelectual, visual, motora e auditiva) em escolas regulares cresceu 112% e chegou a 558 mil.

Principais avanços e novidades do Estatuto

O Estatuto considera pessoa com deficiência aquela que tem “impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Entre as inovações da lei, está o auxílio-inclusão, que será pago às pessoas com deficiência moderada ou grave que entrarem no mercado de trabalho, pena de um a três anos por atos de discriminação em estabelecimentos públicos, acesso ao FGTS para a aquisição de órteses e próteses, entre outros.
Há também a instituição de mais cotas como 2% das vagas em estacionamentos, 10% dos carros das frotas de táxi equipados, 10% dos computadores de lan houses com recursos de acessibilidade, entre outras para atender pessoas com necessidades especiais.
Pelo projeto, o Estado é obrigado a garantir políticas públicas de inclusão social e criar varas especializadas para atendimento da pessoa com deficiência. O cumprimento da lei será responsabilidade da União, dos Estados e dos municípios.

BIBLIOGRAFIA

Estatuto da Pessoa com Deficiência. Acesso online
O Deficiente No Discurso Da Legislação, de Reinoldo Marquezan (Papirus, 2009)
Por Carolina Cunha, da Novelo Comunicação

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Desigualdade: O que o bairro onde você mora, sua cor e sua renda dizem sobre isso?

Desigualdade: O que o bairro onde você mora, sua cor e sua renda dizem sobre isso?

Você já deve ter escutado em algum lugar a frase “O Brasil não é pobre, é desigual”. O que isso significa? Que temos uma economia que produz riqueza, mas que não é distribuída igualmente. 
A pobreza é um problema presente em todos os países, pobres ou ricos, mas a desigualdade social é um fenômeno que ocorre principalmente em países não desenvolvidos. As causas estruturais da pobreza não estão ligadas apenas ao nível de renda. É por isso que o conceito de desigualdade social compreende diversos tipos de desigualdades: de oportunidade, de escolaridade, de renda, de gênero ou acesso a serviços públicos, entre outras. 
A má notícia é que o mundo deve ficar mais desigual.  A tendência é de concentração de riqueza, ou seja, que os ricos fiquem ainda mais ricos, distanciando-se ainda mais das classes de base. Segundo a Oxfam, organização de combate à pobreza, em 2016 os bens e patrimônios acumulados pelo 1% mais rico do planeta ultrapassarão a riqueza do resto da população, 99%.
A desigualdade prejudica a luta contra a pobreza e leva instabilidade às sociedades. A ONG lista uma série de medidas para reduzir o abismo entre ricos e pobres, desde a promoção dos direitos e a igualdade econômica das mulheres, ao pagamento de salários mínimos justos, a contenção dos salários de executivos e o objetivo de o mundo todo ter serviços gratuitos de saúde e educação. 
Outra conclusão desanimadora vem de um estudo dos pesquisadores americanos Douglas Massey, da Universidade de Princeton, e Jonathan Rothwell, do Instituto Brookings, de que o local onde um indivíduo vive seus primeiros 16 anos de vida é determinante para o seu futuro social e econômico. Ou seja, mesmo que uma pessoa nascida em um bairro pobre mude para um lugar melhor (mobilidade social), isso não será suficiente para que ele tenha uma ascensão econômica e social. 
Segundo os pesquisadores, os bairros pobres tendem a ter taxas mais altas de desordem social, crime e violência. As pesquisas mostram cada vez mais que a exposição a este tipo de violência e ambiente de segregação não tem somente efeitos de curto prazo, mas também de longo prazo na saúde e na capacidade cognitiva de seus habitantes. 
Outro dado mostra como o ambiente em que se mora interfere na sua vida social. A chance de jovens negros com idade entre 12 e 18 anos morrerem assassinados no Brasil é quase três vezes maior (2,96) que a de um jovem branco. Os meninos correm risco 11,92 vezes superior ao das meninas. Os dados são do Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens.
Os números mostram uma situação de fragilidade dos negros, cuja maioria da população no Brasil ainda vive em bairros periféricos ou mais pobres. Assim, podemos entender que, na maioria dos casos, cor e o habitat se mostram determinantes para vida social e econômica dos indivíduos.
O primeiro intelectual a falar sobre a desigualdade entre as classes foi o alemãoKarl Marx. Para ele, a desigualdade social era um fenômeno causado pela divisão de classes. Por haverem as classes dominantes, estas se utilizavam da miséria gerada pela desigualdade social, graças ao lucro e acúmulo de propriedades, para dominar as classes dominadas, numa espécie de ciclo.
O economista francês Thomas Piketty, autor de "O Capital no século XXI", coloca o tema da desigualdade como questão central da economia de hoje. Piketty diz que, independente do capitalismo -- contrariando Marx para quem o capitalismo era responsável por aumentar a desigualdade de renda –, "a desigualdade é uma função das forças econômicas e das políticas públicas em jogo em cada país". 
No cenário estudado pelo francês, aqueles que possuem propriedades têm ficado mais ricos do que os demais cidadãos, que não conseguem se aproximar da classe A com seus salários mínimos. Para ele, apenas o investimento em políticas públicas determinadas a reduzir essa distância e a taxação de grandes fortunas poderiam combater a desigualdade.

A desigualdade social no Brasil

Para historiadores, a desigualdade no Brasil é herança do período colonial e se deve a fatores como a influência ibérica, os padrões e posses de latifúndios e aescravidão, que colaboraram para a formação de uma sociedade muito desigual nos quesitos social e econômico. 
No Brasil, o dado mais recente sobre desigualdade mostra um cenário razoavelmente estável. Com relação à renda, em 2013, o indicador referente ao rendimento dos domicílios brasileiros ficou em 0,5, número estável dentro do índice de Gini, que mede a desigualdade de renda em um país. Quanto mais próximo de 0 e mais distante de 1, menor desigualdade. 
De 2012 para 2013, o rendimento dos domicílios no Brasil teve aumento real de 5,7%, passando para R$ 1.681 por trabalhador. No entanto, a renda média aumentou mais no topo da pirâmide (6,4%) do que na base (3,5%), não contribuindo para diminuir a desigualdade.
Hoje o país ocupa a 79ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano(IDH, que avalia saúde, educação e renda) em uma lista de 187 nações.

Rousseau e a desigualdade

Sobre o tema, o filósofo Jean Jacques-Rousseau (1712-1778) produziu uma importante reflexão no seu “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade”, publicado em 1755. Para o filósofo, a desigualdade se baseia na noção de propriedade particular criada pelo homem, na necessidade de um superar o outro. Essa busca pela superioridade teria iniciado os conflitos entre homens de uma mesma tribo e, depois, entre cidades e nações. 
Enquanto o homem vivia em tribos, como comunidade, produzindo o que precisava para sobreviver, estava feliz, segundo o filósofo. Mas as comunidades passam a se enxergar, a se reconhecerem e se compararem. Com o surgimento da agricultura e da metalurgia, cria-se a divisão do trabalho, a noção de propriedade se enraíza e passam a existir homens ricos e homens pobres.
Segundo Rousseau, o maior problema da desigualdade é que ela tende a se acumular. Os que vêm de família mais simples têm, em média, menos probabilidade de obter um nível alto de instrução e, consequentemente, um trabalho de prestígio e bem remunerado. 
O trabalho, aliás, tem peso na desigualdade. Embora seja natural que indivíduos mais bem preparados e com amplo acesso à formação acadêmica obtenham trabalhos mais bem remunerados e de visibilidade, a divisão de trabalho por si só implica na estratificação social. 
Para teóricos como Kingsley Davis (1908-1997) e Wilbert Moore (1914-1987), autores da teoria da estratificação Davis-Moore, essa desigualdade é inevitável e necessária, pois não seria possível motivar os indivíduos a ocuparem posições elevadas se elas não viessem acompanhadas de recompensas, como a riqueza, o poder e o prestígio. Geralmente, essas três recompensas vêm juntas, mas há exceções onde uma ou outra podem alavancar a vida de um indivíduo abrindo novas oportunidades.
Contra a tese Davis-Moore, o sociólogo Melvin Tumin (1919-1994) defendia que esses estímulos ao preenchimento dos papéis sociais poderiam ser praticados, desde que não provocasse a desigualdade de posições na sociedade. 
A ideia de que a desigualdade seria um incentivo ao trabalho e ao enriquecimento já havia sido abordada pelo economista Adam Smith (1723-1790), autor da teoria da “mão invisível” -- se cada homem buscasse seu próprio interesse, “uma mão invisível” garantirá que todos sejam beneficiados.  Mas, o elemento invisível (oferta e procura) e um artigo na Constituição não foram suficientes para garantir igualdade entre as pessoas. 
Hoje, os fatores sociais e econômicos servem para rotular pessoas e isso define muito das oportunidades que elas encontrarão pela frente. A pesquisa de Massey e Rothwell, bem como a projeção da Oxfam, não são cenários irreversíveis, mas mostram que medidas rápidas e efetivas são necessárias para evitar que o abismo entre ricos e pobres se torne intransponível e que, por consequência, outras formas de desigualdade se aprofundem.
Andréia Martins

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Vamos Ler...

Big Data: Como a inteligência de dados vai mudar o nosso dia a dia


Pense na sua rotina diária. Da hora em que você acorda até a hora de dormir, mesmo sem perceber, você realiza diversas interações que geram informações sobre quem é você, o que você pensa e sobre os seus hábitos.

Nunca se gerou tanta informação no mundo como hoje. Num universo sempre conectado, produzimos um volume gigantesco e crescente de dados ao realizar todo tipo de atividade. Mas essas informações só tem valor se lhes foram atribuídas sentido. É aí que entra o Big Data.

Direto ao ponto: Ficha-resumo

Big Data é um termo utilizado para descrever o conjunto de soluções tecnológicas ou uma ciência feita a partir das megabases de dados disponíveis na internet, que analisam e dão sentido a essas informações.

Entre especialistas, há consenso de que esses dados apresentam três características principais, iniciadas pelos três ’Vs’: volume, velocidade e variedade -- há quem já trabalhe com a ideia de mais outros três ‘Vs’, acrescentando veracidade, variabilidade valor.

A novidade com relação ao que podia ser feito antes por qualquer banco de dados é que agora as soluções tecnológicas podem lidar também com os chamados dados não-estruturados, que antes só podiam ser compreendidos quando analisados por pessoas.

Considerados um dos grandes desenvolvimentos tecnológicos em computação do século passado, os Sistemas de Gerenciamento de Banco de Dados (SGBDs), nos quais permitem que tratemos de forma eficiente milhões de contas bancárias e outros sistemas, não tem uma linguagem compatível com os dados não-estruturados.

São exemplos desses dados Tweets, posts no Facebook, vídeos, fotos, informações de geolocalização entre outros que só fazem sentido quando contextualizados. Hoje, esse tipo de dado representa a maior parte das informações geradas na internet.

E como geramos tanta informação? Ao usar aplicativos de celular ou tablet, GPS, câmeras ou interagir em canais digitais como sites, redes sociais e outros dispositivos dos mais diversos tipos, além de sensores, equipamentos médicos e outras plataformas que reúnem grandes quantidades de informação.

Os dados são armazenados em plataformas e Data Centers, que contam com sistemas e ferramentas para compilar resultados em questão de minutos, horas ou dias, combinando matemática, estatística e ciência da computação.

Com o cruzamento de informações, empresas e instituições buscam capturar, armazenar e analisar uma série de dados para apoiar decisões estratégicas, inovar e entender melhor o comportamento do consumidor ou de um determinado público ou ainda para identificar tendências de eventos de vida e oferecer um produto com antecedência, como um casal que vai se casar e recebe uma oferta para comprar um apartamento.

O Big Data também pode ser usado em informações de interesse social como no jornalismo e na análise de políticas públicas pelo Governo. Com a análise de informações, o setor público pode avaliar a qualidade de seus serviços e gerar modelos de previsão. Estatísticas de boletins de ocorrência policiais, por exemplo, podem fornecer dados sobre tendências da violência urbana e ajudar na prevenção do crime.

O mercado de Big Data se insere na economia da informação. Segundo a consultoria Gartner, em 2012, o mercado global de Big Data já movimentava 70 bilhões por ano. No Brasil, a previsão é de que a área movimente cerca de US$ 965 milhões em 2018.

No Brasil, o uso mais comum da Big Data é na venda de produtos, no relacionamento com o consumidor e no monitoramento de redes sociais por marcas que buscam avaliar o que está sendo falado na web e apontar tendências. A indústria de petróleo, em especial, também é grande criadora de dados, que vão da pesquisa sísmica inicial e monitoração eletrônica de poços até a venda de combustível na bomba dos postos de abastecimento.

Um dos impulsionadores do Big Data é a ascensão da Internet das Coisas, nome dado à rede de dispositivos conectados que se comunicam entre si. Com dispositivos integrados, diversos dados poderão ser gerados sobre meio-ambiente, cidades, energia, saúde, entre outros.

Privacidade: a grande questão do Big Data
Se o armazenamento e análise de todo e qualquer dado na internet pode ajudar a traçar comportamentos e tendências, ele também levanta outras questões: o que empresas e governos fazem com tantos dados privados? Que informação pode ser deduzida a partir de dados?

Embora seja um direito não garantindo por lei em muitos países (no Brasil o direito é inviolável e garantido pela Constituição Federal), o direito à privacidade é considerado parte essencial da liberdade, mas passou a enfrentar novos desafios com o advento da internet. Na era da informação, muita gente acreditou que estaria seguro e isolado em seu computador, e que tudo o que acontecesse entre o indivíduo e a tela seria privado, o que não se mostrou verdadeiro.

No caso do Big Data, estamos falando de quantas informações sobre você podem ser armazenadas sem a garantia de que serão utilizadas de maneira ética ou compartilhadas sem que o indivíduo concorde.

A Internet criou um contexto em que as questões de privacidade precisam ser repensadas. Se por um lado acessar informações públicas ficou mais fácil, a coleta de informações particulares, sem autorização dos indivíduos, também se tornou mais frequente. E para conter este segundo avanço, marcos, leis e normas precisam ser criadas para atender ao que acontece no ciberespaço.

Os Estados Unidos e países europeus possuem regras para a manutenção desses dados. No entanto, isso não impediu a Agência de Segurança Nacional, a NSA, de coletar e armazenar inúmeros dados de cidadãos norte-americanos e chefes de Estado de outros países. O caso foi revelado ao mundo pelo ex-agente Edward Snowden.

No Brasil, o acesso a dados particulares é um dos pontos que o Marco Civil da internet regulamenta. Ficou estabelecido que a privacidade é um direito e uma condição para "o pleno exercício do direito de acesso à internet". O usuário tem direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, "sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial". Além disso, está previsto que as operadoras não podem fornecer "a terceiros seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei".

No entanto, o texto do Marco afirma que provedores de internet e sites ou aplicativos devem guardar registros de acesso de usuários -- e não o conteúdo acessado -- por um ano e por seis meses, respectivamente, o que ainda gera polêmica, já que para críticos, tais dados não deveriam ser mantidos.

O grande desafio do Big Data é armazenar com segurança esse “oceano de dados” e proporcionar um rápido acesso aos dados quando necessário, ou seja, a tarefa é equilibrar a balança entre capacidade de armazenamento e a velocidade de geração de dados. Será possível?


DIRETO AO PONTO

Nunca se gerou tanta informação no mundo como hoje. Num mundo sempre conectado, geramos um volume gigantesco e crescente de informações ao realizar todo tipo de atividade. Mas essas informações só tem valor se lhes foram atribuídas sentido. É aí que entra o Big Data.

Big Data é um termo utilizado para descrever o conjunto de soluções tecnológicas ou uma ciência feita a partir das megabases de dados disponíveis na internet, que analisam e dão sentido a essas informações.

Esse cruzamento de informações é usado por empresas, instituições e órgãos públicos que buscam capturar, armazenar e analisar uma série de dados para apoiar decisões estratégicas, entender melhor o comportamento do consumidor ou de um determinado público, identificar tendências de eventos de vida, avaliar a qualidade de serviços, entre outros.

Uma questão delicada sobre o tema diz respeito à privacidade. O que empresas e governos fazem com tantos dados privados? Que informação pode ser deduzida a partir de dados?

A Internet criou um contexto em que as questões de privacidade precisam ser repensadas. Se por um lado acessar informações públicas ficou mais fácil, a coleta de informações particulares, sem autorização dos indivíduos, também se tornou mais frequente. E para conter este segundo avanço, marcos, leis e normas precisam ser criadas para atender ao que acontece no ciberespaço.
Carolina Cunha

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Mais textos para atualizar vocês... e vamos ler!

Política: O que é ser esquerda, direita, liberal e conservador?
Andréia Martins

Nas eleições presidenciais e estaduais de 2014, o Brasil assistiu a uma onda de discursos agressivos, especialmente nas redes sociais, que se dividiam em dois lados: os de esquerda e os de direita, associadas pela maioria aos partidos PT e PSDB, respectivamente.

Definir um posicionamento político apenas pelo viés partidário pode ser uma armadilha repleta de estereótipos, já que essa divisão binária não reflete a complexidade e contradições da sociedade. O fato é que não existe um consenso quanto a uma definição comum e única de esquerda e direita. Existem “várias esquerdas e direitas”. Isso porque esses conceitos são associados a uma ampla gama de pensamentos políticos.

Origem dos termos
As ideologias “esquerda” e “direita” foram criadas durante as assembleias francesas do século 18. Nessa época, a burguesia procurava, com o apoio da população mais pobre, diminuir os poderes da nobreza e do clero. Era a primeira fase da Revolução Francesa (1789-1799).

Com a Assembleia Nacional Constituinte montada para criar a nova Constituição, as camadas mais ricas não gostaram da participação das mais pobres, e preferiram não se misturar, sentando separadas, do lado direito. Por isso, o lado esquerdo foi associado à luta pelos direitos dos trabalhadores, e o direito ao conservadorismo e à elite.

Dentro dessa visão, ser de esquerda presumiria lutar pelos direitos dos trabalhadores e da população mais pobre, a promoção do bem estar coletivo e da participação popular dos movimentos sociais e minorias. Já a direita representaria uma visão mais conservadora, ligada a um comportamento tradicional, que busca manter o poder da elite e promover o bem estar individual.

Com o tempo, as duas expressões passaram a ser usadas em outros contextos. Hoje, por exemplo, os partidários que se colocam contra as ações do regime vigente (oposição) seriam entendidos como “de esquerda” e os defensores do governo em vigência (situação) seriam a ala “de direita”.

Para o filósofo político Noberto Bobbio , embora os dois lados realizem reformas, uma diferença seria que a esquerda busca promover a justiça social enquanto a direita trabalha pela liberdade individual.

Após a queda do Muro de Berlim (1989), que pôs fim à polarização EUA x URSS, um novo cenário político se abriu. Por isso, hoje, as palavras ‘esquerda’ e ‘direita’ parecem não dar conta da diversidade política do século 21. Isso não quer dizer que a divisão não faça sentido, apenas que ‘esquerda’ e ‘direita’ não são palavras que designam conteúdos fixados de uma vez para sempre. Podem designar diversos conteúdos conforme os tempos e situações.

"Esquerda e direita indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas também de interesses e de valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade, contrastes que existem em toda a sociedade e que não vejo como possam simplesmente desaparecer. Pode-se naturalmente replicar que os contrastes existem, mas não são mais do tempo em que nasceu a distinção", escreve Bobbio no livro "Direita e Esquerda - Razões e Significados de uma Distinção Política".

No Brasil, essa divisão se fortaleceu no período da Ditadura Militar, onde quem apoiou o golpe dos militares era considerado da direita, e quem defendia o regime socialista, de esquerda.

Com o tempo, outras divisões apareceram dentro de cada uma dessas ideologias. Hoje, os partidos de direita abrangem conservadores, democratas-cristãos, liberais e nacionalistas, e ainda o nazismo e fascismo na chamada extrema direita.

Na esquerda, temos os social-democratas, progressistas, socialistas democráticos e ambientalistas. Na extrema-esquerda temos movimentos simultaneamente igualitários e autoritários.

Há ainda posição de "centro". Esse pensamento consegue defender o capitalismo sem deixar de se preocupar com o lado social. Em teoria, a política de centro prega mais tolerância e equilíbrio na sociedade. No entanto, ela pode estar mais alinhada com a política de esquerda ou de direita. A origem desse termo vem da Roma Antiga, que o descreve na frase: "In mediun itos" (a virtude está no meio).

A política de centro também pode ser chamada de "terceira via", que idealmente se apresenta não como uma forma de compromisso entre esquerda e direita, mas como uma superação simultânea de uma e de outra.

Essas classificações estariam divididas no que podemos chamar de uma “régua” ideológica:

EXTREMA-ESQUERDA | ESQUERDA | CENTRO-ESQUERDA | CENTRO | CENTRO-DIREITA | DIREITA | EXTREMA-DIREITA

Para os brasileiros a diferença entre as ideologias não parece tão clara. Em 2014, durante as eleições, a agência Hello Research fez um levantamento em 70 cidades das cinco regiões do Brasil perguntando como os brasileiros se identificavam ideologicamente. Dos 1000 entrevistados, 41% não souberam dizer se eram ideologicamente de direita, esquerda ou centro.

A porcentagem dos que se declaram de direita e esquerda foi a mesma: 9%. Em seguida vem centro-direita (4%), centro-esquerda e extrema-esquerda, ambas com 3%, e extrema-direita (2%). Quando a pergunta foi sobre a tendência ideológica de sete partidos (DEM, PT, PSDB, PSB, PMDB, PV, PDT, Psol, PSTU), mais de 50% não souberam responder.

Em determinados momentos da história, ambas as ideologias assumiram posturas radicais e, nessa posição, tiveram efeitos e atitudes muito parecidas, como a interferência direta do Estado na vida da população, uso de violência e censura para contra opositores e a manutenção de um mesmo governo ou liderança no poder.

Ao longo do século 20, parte do pensamento de esquerda foi associada a bases ideológicas como marxismo, socialismo, anarquismo, desenvolvimentismo e nacionalismo anti-imperialista (que se opõe ao imperialismo).

O mesmo período viu florescer Estados de ideologias totalitárias como o nazismo (1933-1945), fascismo (1922-1943), franquismo (1939-1975) e salazarismo (1926-1974), que muitas vezes se apropriaram de discursos da esquerda e da direita.

Outro tema fundamental para as duas correntes é a visão sobre a economia. Os de esquerda pregam uma economia mais justa e solidária, com maior distribuição de renda. Os de direita seriam associados ao liberalismo, doutrina que na economia pode indicar os que procuram manter a livre iniciativa de mercado e os direitos à propriedade particular. Algumas interpretações defendem a total não intervenção do governo na economia, a redução de impostos sobre empresas, a extinção da regulamentação governamental, entre outros.

Mas isso não significa que um governo de direita não possa ter uma influência forte no Estado, como aconteceu na Ditadura. Em regimes não-democráticos, a direita é associada a um controle total do Estado.

O termo neoliberalismo surgiu a partir dos anos 1980, associados aos governos de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, que devido à crise econômica do petróleo, privatizaram muitas empresas públicas e cortaram gastos sociais para atingir um equilíbrio fiscal. Era o fim do chamado Estado de Bem-Estar Social e o começo do Estado Mínimo, com gastos enxutos.

Para a esquerda, o neoliberalismo é associado à direita e teria como consequências a privatização de bens comuns e espaços públicos, a flexibilização de direitos conquistados e a desregulação e liberalização em nome do livre mercado, o que poderia gerar mais desigualdades sociais.

O liberalismo não significa necessariamente conservadorismo moral. Na raiz, o adjetivo liberal é associado à pessoa que tem ideias e uma atitude aberta ou tolerante, que pode incluir a defensa de liberdades civis e direitos humanos. Já o conservador seria aquele com um pensamento tradicional. Na política, o conservadorismo busca manter o sistema político existente, que seria oposto ao progressismo.

Direita e esquerda também têm a ver com questões morais. Avanços na legislação em direitos civis e temas como aborto, casamento gay e legalização das drogas são vistas como bandeiras da esquerda, com a direita assumindo a defesa da família tradicional. Nos Estados Unidos, muitos eleitores se identificam com a chamada direita cristã, que defendem a interferência da religião no Estado.

No entanto, vale destacar que hoje muitos membros de partidos tidos como centro-direita defendem tais bandeiras da esquerda, exceto nos partidos de extrema-direita (como podemos observar na Europa), que são associados ao patriotismo, com discurso forte contra a imigração (xenofobia).


quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A Globo no Brasil

Comunicação: Rede Globo, sinônimo de televisão no Brasil?
Andréia Martins

Celular, internet e serviços de streaming são alguns exemplos de novas formas e plataformas de comunicação e informação surgidas nos últimos anos. No entanto, no Brasil, a televisão ainda se mantém como o meio mais presente no dia a dia dos brasileiros.

Aqui, a mídia televisiva é o meio de comunicação que tem maior repercussão e alcance entre a população. Apesar de recentes dados sobre queda na audiência, uma pesquisa realizada pela Secom (Secretaria de Comunicação visual da Presidência da República), em 2010, apontou que 94,2% da população brasileira utiliza a televisão como fonte principal de informação e entretenimento.

Direto ao ponto: Ficha-resumo

Nesse meio, acompanhamos há décadas a hegemonia de uma emissora em especial: a Rede Globo, empresa fundada pelo jornalista Roberto Marinho (1904-2003) e que entrou oficialmente no ar em abril de 1965, há 50 anos. Atualmente o canal faz parte do maior conglomerado de comunicação da América Latina e, que segundo a emissora, cobre 99% do território nacional.

Quem nunca ouviu alguém comentar que fará tal coisa após o Jornal Nacional, comentar sobre o novo comercial que estreou no Fantástico ou ir ao cabelereiro e escutar as pessoas conversarem sobre a última polêmica que viram na novela das nove?

Entender a trajetória da Globo é entender um pouco da história da televisão no Brasil. Ao longo de cinco décadas, sua presença em todo território nacional e sua programação, jornalística e ficcional passou a influenciar a cultura, política e opinião pública do país.

Trajetória e cultura de massa
Era Getúlio Vargas. Durante os anos 1930 o rádio foi o mais importante veículo de integração nacional e o Estado começou a se preocupar com uma gestação de identidade nacional. No início dos anos 1950, o jornalista Roberto Marinho, então dono de um jornal e uma rádio, percebeu que a TV surgia como o novo advento de comunicação de massa e decidiu apostar no setor.

Em 1957, o presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) aprovou a concessão pública de um canal para a Rede Globo, que seria inaugurado em 1965. Os primeiros anos foram difíceis para o canal que amargava baixas audiências, mas no final da década, com as mudanças na programação e produção, o canal começou a ganhar terreno e a ter receitas com publicidade. Logo ela se tornaria o principal veículo para os anunciantes.

Identidade e integração nacional
Durante a ditadura militar (1964-1985), a TV superou o poder de comunicação do rádio e apoiou o regime para evitar problemas políticos. O apoio editorial à ditadura foi confirmado em um editorial do jornal O Globo em 31 de agosto de 2013, após as manifestações de junho do mesmo ano.  "Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro", diz o texto.

Enquanto isso, o governo militar expandia seu projeto de integração nacional, buscando unir o país com megaprojetos como a estrada Transamazônica e a instalação de um sistema nacional de torres de televisão.

Em 1965, estreia a primeira telenovela da Globo “Ilusões Perdidas”. A partir de 1969, a emissora começa a transmissão via satélite, um marco tecnológico para a época. A inovação chega a todo o país e permite que brasileiros assistam programas ao vivo, como os jogos de futebol.

No mesmo ano estreia o “Jornal Nacional”, que influenciaria a vida política brasileira. Primeiro, por integrar todo o país sendo o primeiro jornal transmitido para todo o território nacional. Segundo, com uma ampla audiência, torna-se o principal veículo de informação da vida política do país.

Quando a programação da Globo passou a ser nacional, muitos brasileiros começaram a ter referências em comum. O alcance da emissora ajudou a formar a cultura de massa no Brasil, com a população compartilhando costumes, gostos, preferências, bordões e comportamentos vistos nos programas e, principalmente, nas novelas da emissora. De alguma forma, todo o país estava conectado por um canal, todos os dias, nos mesmos horários.

Inovações
Outra inovação trazida pela emissora, cujo formato foi muito influenciado pela TV norte-americana, foram os anúncios publicitários. Logo no início, as inserções comerciais eram feitas ao longo do dia nos intervalos dos programas. Ou seja, o formato que hoje se vê em todos os canais brasileiros.

A dramaturgia foi outro elemento de destaque na trajetória da Rede Globo. O brasileiro já escutava novelas pelas rádios e a emissora foi pioneira em transportar o gênero para a TV. A empresa fortaleceu a indústria criativa do país e também criou o Projac, maior conjunto de estúdios televisivos das Américas, inaugurado em 1995.

Combinando seu alcance nacional e uma capacidade técnica e tecnológica avançada e relação às outras redes, a emissora ajudou a construir, através de suas novelas, uma identidade brasileira que era transmitida dentro e, mais tarde, fora do Brasil, passando a ditar tendências de comportamento, moda e outros.

Polêmicas
Desde a sua fundação, a Rede Globo tem um longo histórico de protagonismo, mas também acumula controvérsias na forma como fez negócios e relatou (ou omitiu) fatos em seus telejornais.

Entre as polêmicas, temos o caso da fundação da emissora, feita em sociedade com uma empresa norte-americana, a Time-Life, o que era proibido pela Constituição; o suposto apoio ao regime militar e a influência em eleições presidenciais, como ocorreu em 1989, na edição jornalística do debate entre os candidatos Fernando Collor de Mello e Lula, que culminou na vitória do primeiro.

Críticos de comunicação sempre apontaram o excesso de poder que a Globo teria para influenciar a opinião pública. O jornalista Roberto Marinho chegou a ser considerado um dos homens mais poderosos do país e era amigo de presidentes, como Tancredo Neves (1910-1985), que chegou a consultar o empresário para nomear o ministro das Comunicações. O indicado de Marinho foi Antonio Carlos Magalhães (1927-2007). Após a morte de Tancredo, José Sarney assumiu o cargo e manteve a indicação de ACM.

Outra acusação é de que o Grupo Globo apoiava a ditadura militar. O jornal “O Globo”, por exemplo, chegou a fazer um editorial apoiando o golpe que depôs o governo do presidente João Goulart. E na época da campanha das Diretas Já, em 1984 e 1985, o canal fez uma cobertura limitada das manifestações no país porque temia que uma cobertura ampla acirrasse o clima político.

A manipulação da informação para omitir as jornadas das Diretas Já incluía cobrir um comício em São Paulo (SP) no dia 25 de janeiro de 1984 e apresentá-lo como se ele fosse parte do aniversário da cidade. Este ano, o canal reconheceu publicamente esses erros.

Movimentos sociais como o coletivo Intervozes criticam a concentração econômica em um único canal e consideram a Rede Globo como o símbolo de um monopólio no setor.

Mais recentemente, a emissora foi citada num caso de sonegação fiscal. O conglomerado de comunicação é suspeito de ter sonegado o Imposto de Renda ao usar um paraíso fiscal para comprar os direitos de transmissão da Copa do Mundo FIFA de 2002. No entanto, o processo desapareceu da Receita Federal. Em 2013 uma funcionária do órgão foi condenada pelo sumiço do documento.

No mesmo ano, a emissora confirmou ter pagado uma multa de R$ 274 milhões à Receita Federal, em 2006. Em nota, a assessoria da emissora declarou que "todos os procedimentos de aquisição de direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002 pela TV Globo deram-se de acordo com as legislações aplicáveis, segundo nosso entendimento. Houve entendimento diferente por parte do Fisco. Este entendimento é passível de discussão, como permite a lei, mas a empresa acabou optando pelo pagamento".

O poder da TV
Como meio de comunicação, o teórico Jesús Martín-Barbero escreve que "a televisão terminou por se constituir ator decisivo das mudanças políticas, protagonista das novas maneiras de fazer política". Nesse sentido, televisão e poder se misturam.

Para o filósofo Norberto Bobbio, o poder -- "a capacidade de um sujeito influir, condicionar e determinar o comportamento de outro individuo"--, é a finalidade última da política e ele se constrói através do poder econômico, político e ideológico. Este último é exercido com o uso da palavra e da transmissão de símbolos, ideias e visão de mundo, ou seja, através dos meios de comunicação e da indústria cultural.

No caso da TV, o papel mais importante que ela cumpre como mídia decorre da possibilidade de construir a realidade por meio da representação que faz nos seus telejornais, da própria política e dos políticos, e nos programas de entretenimento e telenovelas, da realidade e dia a dia do país. Não à toa, esse poder da mídia gerou a expressão "quarto poder", criada no final do século 19.

No Brasil, embora siga líder de audiência e ainda enfrente protestos contra a sua programação e o viés jornalístico, a emissora tem pela frente o desafio de se adaptar a novas tecnologias, como a TV digital, e plataformas de conteúdo, e acima de disso, se antecipar para repetir o feito no passado: ser a TV do futuro.


DIRETO AO PONTO

Celular, internet e serviços de streaming são alguns exemplos de novas formas e plataformas de comunicação e informação surgidas nos últimos anos. No entanto, no Brasil, a televisão ainda se mantém como o meio mais presente no dia a dia dos brasileiros.
Entender a trajetória da Rede Globo, que completou 50 anos em 2015, é entender um pouco da história da televisão no Brasil. Ao longo de cinco décadas, sua presença em todo território nacional e sua programação, jornalística e ficcional passou a influenciar a cultura, política e opinião pública do país.
Além da inovação na dramaturgia, área em que sempre foi pioneira no Brasil, a programação nacional a da emissora deu uma sensação de integração nacional ao país nos anos 1960. Muitos brasileiros começaram a ter referências em comum.
O alcance da emissora ajudou a formar a cultura de massa no Brasil, com a população compartilhando costumes, gostos, preferências, bordões e comportamentos vistos nos programas e, principalmente, nas novelas da emissora.
Mesmo com o advento de outras formas e plataformas de comunicação, o poder da TV continua em alta no Brasil. Após 50 anos, a emissora segue com um alto poder de influência na opinião pública e inovando para se manter a frente do mercado televisivo em uma era onde a comunicação se transforma diariamente.
Andréia Martins

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O lado negro do facebook

A edição 348 da Revista Super Interessante traz, estampada em sua capa, aquilo que TODAS as agências de Marketing e profissionais medíocres de marketing digital não queriam que chegasse aos ouvidos dos seus clientes: O FACEBOOK É UMA FARSA! Com o título "O Lado Negro do Facebook" a reportagem mostra que, de acordo com uma pesquisa, realizada por estudiosos das universidades de Michigan e Leuvem (Bélgica), quanto mais as pessoas passam tempo no Facebook, mais se sentem infelizes.

A mais pura realidade: meninos e meninas lutam, desesperadamente, por atenção... Vale tudo para ser notado. Vale ficar nua, vale mendigar "likes", vale gravar cenas de sexo anônimas e divulgar... Vale tudo por um like... Que valores estamos permitindo que o sistema venda para nossos jovens? Como a erosão da família (não importa qual é o modelo de família que você apoia) e dos valores estão transformando nossa sociedade em uma Idiocracia cada vez mais grosseira e insólita? Só o tempo dirá...

O Facebook Manipula Você!

O Facebook define a sequência de informações que você vê na sua timeline, usando um critério secreto que não revela a ninguém. No ano passado, o Facebook realizou uma EXPERIÊNCIA SECRETA com 600 mil usuários, manipulando suas timelines para verificar como isso iria alterar o humor dessas pessoas. SIM, VOCÊ PODE TER SIDO UMA COBAIA!

Os cientistas modificaram o algoritmo de usuários escolhidos de forma aleatória para que mostrassem conteúdo mais positivo ou negativo. E, depois, analisavam o conteúdo postado pelos próprios usuários. A ideia era entender se o que vemos em redes sociais afetam a forma com que nos sentimos. Em outras palavras, se os sentimentos publicados no Facebook são contagiosos.

O resultado? Sim, eles podem manipular emoções de usuários - de uma forma positiva ou negativa - com pequenas mudanças no algoritmo do Facebook.


E o que é pior: os testes não foram feitos APENAS UMA VEZ! Nada é SIMPLESMENTE EXPERIMENTAL!


O Facebook está consumindo seu bem mais precioso: O TEMPO!

Segundo a pesquisa "Digital, Social and Mobile 2015" da We Are Social, os BRASILEIROS passam, em média, QUASE 4 HORAS nas redes sociais, diariamente. Estes mesmos brasileiros, quando perguntados sobre porque suas vidas não avançam, porque não fazem aquele curso de Inglês, porque não terminam a faculdade, porque não fazem uma pós-graduação ou MBA, respondem que... NÃO TEM TEMPO!


Dica: fique 90 DIAS (apenas) sem acessar o Facebook e descubra o quanto você é capaz de realizar com a quantidade ENORME de tempo que você vai conseguir neste período!
(OBS: Acredito que 99% das pessoas aqui não conseguirão, pois já estão viciadas no Facebook, como qualquer viciado em drogas...

O Facebook está prejudicando nossas relações!

Quem nunca se desentendeu com um amigo, um parente ou um conhecido através das redes sociais?
Nossa vida, mediada pelas redes sociais, tem se tornado traumática e excessiva. Estamos nos tornando reativos, narcisistas e incapazes de lidar, de forma respeitosa e digna, com as diferenças de opinião. Vivemos tempos de (In)Comunicação. Temos várias ferramentas de comunicação, mas não conseguimos manter diálogos. Nossa comunicação é deficiente, fraca, superficial. Estamos transformando a internet na nova televisão: A interação está morrendo! Estamos reagindo como o Cachorro de Pavlov, salivando a cada nova postagem, em contínuo reflexo condicionado, e dando nossos likes, mas sem que isso tenha um sentido. Estamos no piloto automático, e nem nos demos conta.


Graças à forma superficial como o Facebook "resignificou" a palavra "amigo" em nosso idioma, estamos permitindo que nossas relações se tornem rasas, superficiais, insípidas.
Ninguém se importa mais! As relações humanas nesse nosso maravilhoso mundo moderno são pautadas no individualismo e na perda do conceito de coletividade.


O Facebook já chegou a ser apontado como uma das maiores causas de divórcio nos EUA. Eu não concordo 100% com esta pesquisa, mas não podemos discordar do fato de que, certamente, todos nós já testemunhamos casos de brigas conjugais, términos de relacionamentos e outros problemas atribuídos às redes sociais, não é verdade (desde a época do Orkut, inclusive...)

Então, a culpa de tudo que nos tornamos é do Facebook?

Não. Definitivamente, o Facebook tem uma boa parte da culpa, mas, no final, ele é apenas uma vitrine. Uma ferramenta. Um espelho que nos mostra, de forma fria e explícita, no que nos tornamos enquanto sociedade: Falhamos. Miseravelmente!


Ainda há tempo. Desintoxique-se. Desligue as notificações. Viva uma vida DE VERDADE, e não apenas para mostrar para gente que você não gosta, algo que você não é, consumindo coisas das quais você não precisa, com um dinheiro que você não tem. Entenda que tudo isso é uma grande ilusão. Ninguém é tão feliz quanto quer fazer crer através das redes sociais.

Parece exagerado. Parece fantasioso. Parece ridículo. MAS É REAL! TODOS NÓS FAZEMOS ISSO O TEMPO TODO! Postamos fotos do que comemos, de onde estamos, dos nossos hábitos, das pessoas que nos cercam, das nossas preferências em diversos temas da vida… E depois, reclamamos que estamos perdendo nossa privacidade! Nós estamos nos tornando viciados na aprovação alheia.


Reflitam e entendam, definitivamente: A vida nas redes sociais É UMA FARSA. Uma encenação, criada diariamente, por pessoas que precisam desesperadamente de atenção, pessoas que estão carentes de contato humano, de uma ligação. Pessoas precisam de pessoas. Pessoas precisam de contato. Pessoas precisam de HUMANIDADE! 



Leia mais: http://forum.antinovaordemmundial.com/Topico-o-lado-negro-do-facebook-na-capa-da-super-interessante#ixzz3eUVStWih

terça-feira, 9 de junho de 2015

A animalização do homem em Vidas Secas

4. A animalização do homem em Vidas Secas
Embora não se trate de temática inédita, a análise da "animalização do homem" [11] em Vidas Secas não se encontra, a nosso ver, inteiramente esgotada, mormente se considerarmos as suas possíveis relações com o Direito. Nesse sentido, o exame dessa questão em face da dignidade da pessoa humana, o qual pretendemos concretizar, pode conduzir-nos a conclusões e interações ainda não pensadas, hábeis, por isso, a demonstrar a riqueza dos escritos sob enfoque.
Mas o que seria essa animalização do homem, tema tão correntemente atribuído à obra em referência? Do seu significado, constante dos dicionários da língua portuguesa, já se pode ter uma boa idéia do sentido pelo qual o vocábulo vem sendo utilizado. Do tradicional Aurélio, vê-se que o verbo é sinônimo de tornar bruto, embrutecer, bestializar. Da Encyclopedia e Diccionario Internacional,de W.M. Jackson (Inc. Editores, Rio de Janeiro), citada por Rogério Lacaz-Ruiz [12], em artigo específico sobre o tema, o verbete animalisar(sic) possui a acepção de "Reduzir aos instintos, aos apetites, aos gostos do animal." De se dizer, dessa forma, que o homem animalizado é aquele que age instintivamente apenas, ou, coloquialmente, "de impulso", sem qualquer racionalização sobre os seus atos. A animalização é, pois, o embrutecimento, é o retorno à condição de animal.
Em Vidas Secas, são vários os exemplos dessa verdadeira bestialização do ser humano. De início, basta rememorar que durante toda a narrativa, são pouquíssimos os diálogos entre os integrantes da família. Ao invés de conversas, a comunicação entre eles era efetivada, sobretudo, por meio de gestos e sons guturais. No capítulo primeiro, é bastante ilustrativa a seguinte passagem, vivenciada por sinha Vitória: "sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com sons guturais que estavam perto" [13]Mais a frente, ainda no primeiro capítulo, outro bom exemplo pode ser retirado:
Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixa de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra. [14]
Aqui, a sutiliza da crítica do autor alagoano chega a ser genial: o papagaio da família somente imitava os latidos da cachorra Baleia, pois esse era o único som regularmente ouvido na casa; a comunicação, como já se disse, era extremamente escassa entre Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.
Noutro momento do livro, também "protagonizado" por sinha Vitória, a animalização ainda é mais descarada. Nessa ocasião, a personagem, com o intuito de se alimentar, lambe o sangue de preá que ficara retido no focinho da cachorra Baleia, após o abatimento, por esta, do roedor: "Levantaram-se todos gritando, o menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sono. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo." [15]A redução aos instintos, da qual se fez referência acima, é bastante evidenciada nesse caso.
Mas é com Fabiano, o protagonista de Vidas Secas, que a bestialização ressai mais explícita. No capítulo segundo, como visto, a própria personagem se caracteriza como um animal: "Você é bicho, Fabiano. Isso para ele era motivo de orgulho. Sim, senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades" [16]. Já noutros trechos, ele é equiparado a animais: "O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco" [17]Ainda:"Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia..." [18]e "Era um desgraçado, era como um cachorro, só recebia ossos" [19].
Em contraste, mas como mais uma nítida evidência da animalização do homem, a cadela Baleia é claramente humanizada durante algumas passagens: "Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos. A opinião dos meninos assemelhava-se à dela [20]" e "Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam..." [21]"Defronte do carro de bois, faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo [22]"Ao retratar Baleia como um membro da família de retirantes, dotada, diversamente dos demais, de uma série de atitudes humanas (como a demonstração de opinião e o andar com apenas duas pernas), Graciliano somente reforça essa animalização do homem, eis que coloca, em um mesmo nível, o animal de estimação da família e a própria família. A humanização de Baleia não representa, assim, uma assunção de consciência por sua parte ou uma elevação da sua condição animal. Significa, lado outro, que ela estava no mesmo nível de seus "donos", verdadeiros animais em Vidas Secas.
Que os familiares de Fabiano, e ele próprio, são bestializados, reduzidos aos seus instintos, na obra de Graciliano, entende-se, neste momento, já se tratar de uma clara evidência. A análise da animalização não se completa, todavia, se não se perquiri por sua razão. O que, afinal, isso quer significar? O que o autor pretendeu dizer ao fazer tal crítica? A intenção, a nosso ver, foi, por intermédio de uma exposição escancarada da conseqüência (a animalização), lançar luzes sobre a respectiva causa (a forte exclusão social desse povo), realizando uma dura e inteligente crítica social. A "animalização do homem" em Vidas Secas não é outra coisa senão fruto da intensa exclusão social vivenciada pelos retirantes nordestinos nela retratados (na obra).
Colocados em condições tão extremas de vida, Fabiano e sua família precisam, antes de qualquer outra coisa, preocupar-se em sobreviver. Simplesmente existir, antes de qualquer outra coisa. Como tal, ante a realidade por eles vivenciada, era tarefa extremamente difícil, a atenção a atitudes próprias do ser humano, como o planejar o futuro, o interagir com os demais homens, o gostar/amar alguém, o constituir família, o pensar sobre qual é profissão que lhe completa, o defender uma ideologia e o próprio o refletir sobre sua posição na sociedade ficam relegadas a um segundo plano (para não dizer a um terceiro, dado o elevado distanciamento), muito atrás do sobreviver. De fato, não há como agir racionalmente – que é o que diferencia o homem dos demais animais – se não se tem, antes, condições mínimas de subsistência. O homem precisa, anteriormente a qualquer outra coisa, atender as suas necessidades fisiológicas. Manter-se de pé, figurativamente. Por mais que se difira dos demais animais, uma vez que é racional, o homem é um ser vivo como todos os outros e, nessa condição, não prescinde do atendimento a determinadas necessidades para subsistir. Se não as observa, o homem fica estancado ali, na condição de mero animal, agindo instintivamente em busca de meios para sobreviver. O homem socialmente excluído, assim, que não tem o mínimo para sobreviver (leia-se comida e água), não consegue sair da condição de animal. E é por isso que se pode dizer que o homem só pode ser homem (no sentido antropológico e social da palavra) se ele não tem problemas sendo um animal (ou seja, atende às necessidades físicas de sobrevivência).
Aqui reside a principal crítica de Graciliano. Por meio dessa "animalização do homem" o autor demonstra como é extrema a exclusão social dos retirantes. Não se trata, apenas, da classe excluída, à margem, que não detém, temporariamente, ingerência sobre os rumos da comunidade/sociedade da qual é parte integrante. Tampouco de uma simplesmente menos favorecida, que não tem acesso a alguns serviços públicos, mas que, ainda assim, possui condições de viver. Trata-se de um povo que não tem sequer como manter-se de pé, eis que sequer possuem o que comer. E não tendo o que comer, eles não podem fazer mais nada, inclusive, agir como homens que são. Não podem, assim, lutar para sair dessa condição, brigar pelos seus direitos, questionar a sua posição e toda a estrutura na qual estão inseridos [23]. A exclusão é tamanha, quando o homem é animalizado, que ele não tem quaisquer meios para tentar sair dessa condição. É essa, pois, a crítica mais veemente em Vidas Secas: se ao homem não são dadas condições mínimas de subsistência ele sequer pode agir como homem; fica relegado à condição de animal.


A animalização do homem e a dignidade da pessoa humana

Ante as considerações realizadas na seção anterior, outra relação, entre Literatura e Direito, não seria mais oportuna em Vidas Secas que aquela existente entre a "animalização do homem" e a dignidade da pessoa humana. Seja como for tomada, como direito fundamental e/ou humano, princípio ou valor fundante/estruturante do sistema jurídico, trata-se de mandamento jurídico de extrema relevância, senão o mais importante. Conforme observa a doutrina especializada, a exemplo do Min. Gilmar Ferreira Mendes [24], a dignidade da pessoa humana está presente nos mais diversos textos jurídicos ocidentais, principalmente naqueles de status constitucional, geralmente nos seus preâmbulos. No Brasil, encontra-se prevista logo no art. 1º da sua Constituição, como próprio fundamento do Estado que acabara de surgir.
Para muitos [25], entre estudiosos e aplicadores do direito, cuida-se de direito/princípio/valor [26] bastante criticável, eis que, de tão absoluto e geral (como é costumeiramente qualificado), por vezes acaba desprovido de qualquer conteúdo, principalmente quando levado a uma situação concreta – o que coloca em cheque a sua própria efetividade (considerado como norma jurídica). Mas é provavelmente em razão disso, como nota o acima mencionado autor, que se tem feito um tão grande esforço, tanto em terras brasileiras, quanto internacionais, em fazer aplicável a o preceito que traz inserto em seu bojo (a dignidade da pessoa humana).
Mas o que é esse verdadeiro fundamento da República Federativa do Brasil? Em termos melhores: o que diz esse direito/princípio/valor? Que garantias traz? Em poucas palavras, pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana, peça estruturante do sistema jurídico brasileiro, é que concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Afasta, ademais, a prevalência de concepções transpersonalistas de Estado sobre as liberdades individuais [27]. Segundo Alexandre de Moraes, que nos oferece conceituação bastante completa:
[...] é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menos prezar a necessária estima que merecem todas as pessoas quanto seres humanos [...] [28].
É, em suma, direito, princípio ou valor pelo (s) qual (is) é assegurada, a toda pessoa humana, a possibilidade de sê-la em toda sua plenitude. Respeitar a dignidade da pessoa humana é, pois, respeitar a natureza do homem, com suas necessidades, questionamentos, angústias e anseios, sem impor quaisquer limitações injustificadas.

Dessas considerações, percebe-se, com nitidez, o imenso valor jurídico da obra em questão: Vidas Secas traz, consigo, por meio da descrição da interação do retirante nordestino com outros integrantes da Sociedade e com a terra, em tempos de extrema seca, uma clara e lúcida definição da dignidade da pessoa humana. E o faz por meio da demonstração do seu malferimento, da sua completa violação: expõe-na na total ausência de dignidade (no sentido ora trabalhado) de que padecem Fabiano e sua família, que não têm, como já se viu, as suas características de seres humanos respeitadas, sendo transformados em verdadeiros animais, embrutecidos, bestializados. Pode-se dizer, inclusive, que, na exemplificação que promove, Vidas Secas possibilita uma compreensão mais clara da dignidade da pessoa humana do que qualquer conceituação abstrata (própria, vezes da norma jurídica, outras muitas vezes da doutrina especializada), poderia oferecer. Fá-lo, pois demonstra o que é a ausência de dignidade humana, que, de tão grave, violenta e intensa, evidencia, de forma muito mais nítida, o seu real significado. Essa obra de Graciliano Ramos funciona, assim, como verdadeiro veículo do direito, eis que, além de permitir a sua melhor apreensão, ajuda a desenvolvê-lo, passando a integrá-lo.

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