A polêmica da internação
compulsória
Medida sugerida
como política pública para usuários de crack provoca discussões; defensores
da proposta argumentam que “um em cada dois dependentes químicos apresenta
transtorno mental”, aqueles que discordam citam abusos e ineficácia do
procedimento
|
Luiz
Loccoman
Drogas como o crack agem de maneira tão agressiva no corpo do
usuário que não permitem que ele entenda a gravidade de sua situação e o quanto
seu comportamento pode ser nocivo para ele mesmo e para os outros. Foi com base
nessa ideia que o deputado federal Eduardo Da Fonte (PP-PE) apresentou em março
deste ano uma proposta de política pública que prevê a internação compulsória
temporária de dependentes químicos segundo indicação médica após o paciente
passar por avaliação com profissionais da saúde. A internação contra a vontade
do paciente está prevista no Código Civil desde 2001, pela Lei da Reforma
Psiquiátrica 10.216, mas a novidade agora é que o procedimento seja adotado não
caso a caso, mas como uma política de saúde pública – o que vem causando polêmica.
Aqueles que se colocam a favor do projeto argumentam que um em cada dois
dependentes químicos apresenta algum transtorno mental, sendo o mais comum a
depressão. A base são estudos americanos como o do Instituto Nacional de Saúde
Mental (NIMH, na sigla em inglês), de 2005. Mas vários médicos, psicólogos e
instituições como os Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs), contrários à
solução, contestam esses dados.
Os defensores da internação compulsória afirmam que o consumo de
drogas aumentou no país inteiro e são poucos os resultados das ações de
prevenção ao uso. A proposta tem o apoio do ministro da Saúde Alexandre
Padilha, que acredita que profissionais da saúde poderão avaliar adultos e
crianças dependentes químicos para colocá-los em unidades adequadas de
tratamento, mesmo contra a vontade dessas pessoas. O ministro acrescenta que a
medida já é praticada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O
Conselho Federal de Medicina (CFM) também é a favor da medida. Durante a
reunião de apresentação do relatório de políticas sociais para dependentes de
drogas, o representante do CFM Emmanuel Fortes corroborou a proposta de
internação compulsória nos casos em que há risco de morte, ressaltando que a
medida já é praticada no país.
De fato, de acordo com Relatório da 4a Inspeção Nacional de
Direitos Humanos (que pode ser consultado clicando aqui ),
apesar de a lei no 10.216 prever a internação compulsória como medida a ser
adotada por um juiz, o que se vê na prática com os usuários de álcool e outras
drogas contraria a lei, pois introduz a aplicação de medida fora do processo
judicial. Maus-tratos, violência física e humilhações são constantes nessas
situações. Há registros de tortura física e psicológica e relatos de casos de
internos enterrados até o pescoço, obrigados a beber água de vaso sanitário por
haver desobedecido a uma norma ou, ainda, recebendo refeições preparadas com
alimentos estragados.
DE TRÊS FORMAS
Atualmente estão previstos três tipos de internação: voluntária,
involuntária e compulsória. A primeira pode ocorrer quando o tratamento
intensivo é imprescindível e, nesse caso, a pessoa aceita ser conduzida ao
hospital geral por um período de curta duração. A decisão é tomada de acordo
com a vontade do paciente. No caso da involuntária, ela é mais frequente em
caso de surto ou agressividade exagerada, quando o paciente precisa ser contido,
às vezes até com camisa de força. Nas duas situações é obrigatório o laudo
médico corroborando a solicitação, que pode ser feita pela família ou por uma
instituição. Há ainda a internação compulsória, que tem como diferencial a
avaliação de um juiz, usada nos casos em que a pessoa esteja correndo risco de
morte devido ao uso de drogas ou de transtornos mentais. Essa ação, usada como
último recurso, ocorre mesmo contra a vontade do paciente.
CASO A CASO
Para a secretária adjunta Paulina do Carmo Duarte, da Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), o discurso que circula sobre
epidemia do crack não está de acordo com a realidade. “Há no imaginário popular
a ideia equivocada de que o Brasil está tomado pelo crack, mas o que existe é o
uso em pontos específicos que pode ser combatido com atendimento na rua, não
com abordagem higienista, com o mero recolhimento de usuários.” Dados do
Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid) revelam que 12% dos
paulistanos são dependentes de álcool e apenas 0,05% usa crack. A psicóloga
Marília Capponi, conselheira e representante do Conselho Regional de Psicologia
de São Paulo (CRP-SP), aponta que, apesar dos dados, o crack tem sido tratado
como epidemia em todo o território nacional nos últimos anos, e com isso tem
sido disseminada a necessidade de uma resposta emergencial para resolver a
questão, o que referenda a internação compulsória. Marília, que também é
cordenadora de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), argumenta, porém, que
essa é uma propaganda falaciosa. Estudos desenvolvidos em centros de pesquisa
de várias partes do mundo mostram que de todas as pessoas que se submetem a
tratamento para se livrar das drogas, apenas 30% conseguem deixar a
dependência; mas o acompanhamento dos casos mostra que é imprescindível o
tratamento específico e muito esforço multiprofissional.
O sistema de conselhos de psicologia acredita que a medida fere os
direitos humanos e tenta destruir o movimento da reforma psiquiátrica. Defende
que não basta reconhecer a insuficiência da rede de saúde na administração das
necessidades dos que dependem de drogas, mas estabelecer o compromisso de
ampliá-la com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Os
especialistas acreditam que a opção pela internação em instituição terapêutica
deve ser considerada e respeitada, mas desde que seja avaliada caso a caso – e
jamais adotada como uma política pública.
“Trabalhadores, gestores e usuários do SUS mobilizaram-se a favor
da defesa dos direitos humanos e do tratamento em serviços abertos e
articulados com a Rede Antimanicomial. Fica claro que as comunidades
terapêuticas não são aceitas pelos que constroem o SUS. Elas se constituem em
serviços que se organizam a partir de pressupostos morais e religiosos que ainda
persistem devido à correlação de forças nas diferentes instâncias dos
legislativos, executivos e judiciários do nosso país”, afirma Marília Capponi.
Outro estudo, feito pelo psiquiatra e coordenador do Programa de Orientação e
Atendimento a Dependentes (Proad) Dartiu Xavier da Silveira, da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), mostra que apenas 2% dos pacientes internados
contra a vontade têm sucesso no tratamento e 98% deles reincidem. “A
porcentagem de fracassos é alta demais para que a medida seja adotada como
política pública no enfrentamento do crack”, afirma Marília.
Enquanto se discute a questão, dois usuários de crack são
internados involuntariamente todos os dias em São Paulo. Entre pessoas
dependentes dessa e de outras drogas e a pacientes psiquiátricos, o número de
encaminhados para instituições terapêuticas contra a própria vontade nos
últimos oito anos passa dos 32 mil, segundo dados do Ministério Público.
Marília garante que as experiências relatadas por quem já passou pela
internação forçada são desumanas. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem
proposto debates para discutir formas de enfrentamento do uso abusivo de álcool
e drogas ilegais, argumentando que o problema tem raízes na desigualdade social
e que apenas articulações em rede, da qual participem diversos setores e
instituições sociais, podem ser eficazes para resolver a questão.
CONFLITOS E DESAFIOS
O movimento da reforma psiquiátrica é uma luta pelos direitos de
pacientes psiquiátricos que denuncia a violência praticada nos manicômios e que
propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias comunitárias para o
tratamento dessas pessoas. O movimento ganhou força na década de 70 no Brasil
com a mobilização de profissionais da saúde mental e familiares de pacientes insatisfeitos
com os métodos praticados na época. A nova política de saúde mental visa o
tratamento em rede substitutiva, ou seja, em locais que o paciente possa
frequentar, sem a necessidade de passar longos períodos internado, longe da
convivência familiar e comunitária.
O movimento de desconstrução do hospital psiquiátrico
implica um processo político e social complexo, composto de diversos atores,
instituições e forças de diferentes origens do qual o CRP participou
efetivamente; por isso a instituição se posiciona contra as internações
compulsórias e contra as comunidades terapêuticas, defendendo o tratamento em
locais abertos ligados à rede antimanicomial. Para isso luta pela ampliação dos
serviços oferecidos pelos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que é um
trabalho em saúde mental aberto e comunitário do SUS e local de tratamento para
pessoas que justifiquem sua permanência num dispositivo de atenção diária; nas
unidades de acolhimento transitório, postos que funcionam como uma passagem
breve para o dependente, que depois será encaminhado a serviços de reinserção
social. Também são considerados necessários consultórios de rua que atendam à
população em situação de risco e vulnerabilidade social, principalmente
crianças e adolescentes usuários de álcool e outras drogas; bem como a oferta
de leitos em hospital geral e equipes de saúde mental básica articuladas com as
redes de urgência.
Uma contrapartida à internação compulsória é o reforço de
políticas públicas de tratamento em rede substitutiva, em convivência familiar
e comunitária aos usuários de entorpecentes. “A dependência química é um
fenômeno que deve ser discutido da perspectiva biopsicossocial; o tráfico, o
desemprego e a violência pedem intervenções mais amplas e recursos de outras
áreas como educação, habitação, trabalho, lazer e justiça”, ressalta Marília.