Deveria ser evidente que um dos papéis da escola é propiciar
condições para que os alunos venham a escrever certo e bem (tudo o que
se diz sobre "não corrigir mais" é erro ou falta de leitura). Tal
objetivo só se alcança com muita prática (muita gente gostaria de chegar
lá sem esforço, aplicando receitas do tipo "seja claro", "escreva
frases curtas", "evite chavões"...).
Não deveria haver muitas dúvidas sobre o que é escrever certo.
Uma orientação pode ser "evite extremos": nem muito popular, nem muito
arcaico. À luz dos fatos, não se deveria mais condenar certas regências
(assistir
o programa, preferir ler
do que comer), embora se possa chamar a atenção sobre elas e explicar a mudança (ou a variação).
Já escrever "bem" é um conceito um pouco relativo. Sempre se
escreve um gênero que está em um campo. Não é a mesma coisa escrever um
texto científico e uma narrativa policial, um diálogo entre
profissionais com curso superior e outro de personagens da madrugada ou
da periferia (vide João Antônio ou Rubem Fonseca).
O que considero mais importante é o processo de escrita, o
trabalho de reescrita. Já defendi muitas vezes que a questão pode ser
resumida a dois passos:
a) obter um texto, de preferência com alguma preparação (ler, ouvir contar, juntar dados etc.);
b) colocar esse texto num quadro (negro, branco, verde) e
reescrever seguidamente, considerando as opiniões dos alunos, para obter
diversas versões. Depois, cada um escolhe a sua.
Ler e compreenderUma informação, ou duas: os
alunos têm sugestões incríveis, inesperadas, e, além disso, gostam
desse tipo de trabalho. Os depoimentos dos professores que dão aulas
assim são unânimes.
Vou dar um exemplo. O "dado" que vou analisar foi publicado em um
jornal, há mais de dez anos, como evidência de que a escola estava mal.
Especialistas disseram, inclusive, que era impossível ler o texto. Está
claro que não eram especialistas em nada...
"A violencia começo assim um impresto a borracha para o outro
colega ai, u outro perde o a borracha ai o outro falo: daí minha
borracha que eu vou usar agora o meu eu perdi o outro falou: se vai da
outra. Eu não vou dar não então eu ti pego na hora da saida. aí começo.
Ai porrada de lá porrada de cá e assim vai. Aí ou tro tiro arma do bolso
e atiro: pro que isso pessoal por causa de uma borracha seis vão
brigar."
ErrosA primeira coisa a fazer é ler o texto
adequadamente. O que significa "pontuar" (a violência começou assim.).
E, por exemplo, pronunciar "emprestou" (ou "imprestô") mas não "impr
ésto", "começou" (ou "começo"), e não "com
éço", "aí" e não "ai", "dá aí" e dão "daí" etc. Se os alunos não sabem escrever, um professor tem que saber ler...
É essencial compreender a natureza dos erros. Alguns podem ser
claramente associados à pronúncia corrente (ou dos alunos): impresto,
atiro, começo, tiro (emprestou, atirou, etc.). Uma compreensão mínima do
texto deixa claro que são formas do passado (imprestô, atirô, começô,
tirô) que perderam a semivogal do ditongo final.
O caso que merece, aliás, uma observação: em vez de simplesmente
julgar essas formas como desvios, é bom dar-se conta de que são
regulares: há sempre queda da semivogal; a vogal permanece; ou seja, não
se erra de qualquer jeito, mas segundo uma regra. Além disso, trata-se
de pronúncias típicas também de pessoas cultas (basta ver debates na
TV). Semelhante a esses erros é o caso de "quere" (querer): a queda do
-r final em infinitivos é geral, não só um fenômeno popular.
Há outros erros que são devidos a uma "transcrição" da pronúncia, especialmente
se e
seis. São variantes populares de
você e
vocês. Poderiam ter sido escritas
ce e
ceis, ou até mesmo
cê e
cês (ou
cêis).
CorreçãoHá erros que decorrem evidentemente de tentativas de acertar. Grafar "outro" como se fossem duas palavras (
ou tro)
é um caso que chama a atenção. O fato de "ou" ser uma palavra (em
outros contextos) pode ter influenciado a decisão do aluno. Bastante
sugestivo é também outro erro: "perde o" por
perdeu, em que se conjugam dois fenômenos:
a) assim como é comum a mudança de
o para
u, ocorre frequentemente a mudança inversa,
u para
o (é um caso de hipercorreção);
b) além disso, a forma é tratada como se fosse um verbo seguido
de um pronome; é claro que se trata de uma tentativa de escrever
corretamente, como se fosse uma forma análoga a "perde-o", "visita-o"
etc. Duas coisas são bem claras nesse caso: uma, que é um erro (há até
mais de um...); outra, que certamente não se trata de "deficiência" - a
não ser de prática, de familiaridade com a escrita.
Casos como "saida", "ai", "sima" e "da" são erros que podem ser
classificados como escolha da opção errada entre as possibilidades
"legais": troca de
c por
s e falta de acentuação.
A segunda etapa do trabalho é corrigir esses erros, escrever
certo. Claro, coloquem-se as maiúsculas, quando for o caso, sem recitar
listas de regras. O segredo é praticar!
O resultado pode ser (entre outros):
"A violência começou assim: um emprestou a borracha para o outro
colega. Aí o outro perdeu a borracha. Aí outro falou: - Dá aí minha
borracha, que eu vou usar agora. - Ô meu, eu perdi. O outro falou: -
Você vai dar outra. - Eu não vou dar não. - Então eu te pego na hora da
saída. Aí começou. Aí, porrada de lá, porrada de cá, e assim vai. Aí o
outro tirou a arma do bolso e atirou. - Por que isso, pessoal? Por causa
de uma borracha vocês vão brigar."
Fazendo isso numa aula, diversas questões de gramática podem ser
explicitadas. É um equívoco achar que não se pode tratar de todas ao
mesmo tempo. Afinal, aprendemos a falar ouvindo falas completamente
misturadas.
Escrever bemOutro passo é melhorar o texto,
na direção de escrever "bem". Pode-se reescrevê-lo seguindo certas
normas de transcrição de diálogos (travessões etc.), incluindo-se as
intervenções do narrador, que organizam a avaliam os fatos. E deixar os
passos claros, na prática. Por exemplo:
"A violência começou por causa de uma bobagem. Um menino
emprestou a borracha para outro colega, que a perdeu. Num certo momento,
o dono da borracha falou:
- Dá aí minha borracha, que eu vou usar agora.
- Ô meu, eu perdi, respondeu o outro.
E a conversa foi ficando mais tensa.
- Você vai ter que me dar outra.
- Eu não vou dar não.
- Se não me der outra, eu te pego na saída.
E então começou a briga. Houve troca de socos e pontapés. Até que
um deles tirou uma arma do bolso e atirou. Foi quando interveio uma
menina dizendo:
- Por que isso, pessoal? Vocês vão brigar desse jeito por causa de uma borracha?"
"Certinho"
Muitas vezes, a escola se dá por satisfeita quando obtém textos
como este, que é apenas "certinho". É claro que este deve ser um dos
objetivos. Mas, convenhamos, a briga, com trocas de agressões rápidas,
ficou sem graça. Parece um jogo de xadrez (mostrei este trabalho, em
certa ocasião, e uma professora fez exatamente este comentário: não
parece mais uma briga, um bate-boca).
Acertar menosCompare-se esta escrita com a seguinte. Observe-se especialmente a pontuação e a distribuição gráfica das falas:
"Diga, o que eles querem? Sei lá, eu disse, eu sei, ele falou,
eles querem homens como você. Eu tenho acompanhado seu trabalho, meus
homens falam muito de você. Fui eu que pedi ao Dr. Carvalho nos
apresentar. As pessoas aqui do bairro te adoram e você sabe disso. Os
comerciantes te respeitam. A polícia te respeita. As donas de casa te
respeitam. E o que você faz, Máiquel? Eu matava pessoas, mas isso eu não
disse, fiquei esperando ele responder. Filantropia para a polícia, é
isso que você faz. Filantropia, eu repeti, é filantropia, ele disse, só
que nesse país não se deve fazer filantropia, cobre sempre, cobre tudo,
eu cobro, eu disse, cobra pouco, ele disse, cobra muito pouco, ninguém
quer sujar as mãos, ele disse, há um bom mercado, ele disse, um mercado
muito bom mesmo, pode-se ganhar muito dinheiro." (Patrícia Melo, O
Matador)
O trecho é de um romance. Seria ridículo querer "corrigir"
(embora seja bom comentar as opções do texto, para mostrar seu efeito): a
conversa perderia totalmente seu ritmo, aspecto que tem tudo a ver com
escrever bem.
Às vezes, para conseguir esse bom efeito, é preciso errar um pouco. Ou acertar menos.