Partir de um texto como referência e criar variadas versões dele é uma das maneiras mais eficientes de aprender a escrever bem (e certo)
Sírio Possenti
Deveria ser evidente que um dos papéis da escola é propiciar condições para que os alunos venham a escrever certo e bem (tudo o que se diz sobre "não corrigir mais" é erro ou falta de leitura). Tal objetivo só se alcança com muita prática (muita gente gostaria de chegar lá sem esforço, aplicando receitas do tipo "seja claro", "escreva frases curtas", "evite chavões"...).
Não deveria haver muitas dúvidas sobre o que é escrever certo. Uma orientação pode ser "evite extremos": nem muito popular, nem muito arcaico. À luz dos fatos, não se deveria mais condenar certas regências (assistir o programa, preferir ler do que comer), embora se possa chamar a atenção sobre elas e explicar a mudança (ou a variação).
Já escrever "bem" é um conceito um pouco relativo. Sempre se escreve um gênero que está em um campo. Não é a mesma coisa escrever um texto científico e uma narrativa policial, um diálogo entre profissionais com curso superior e outro de personagens da madrugada ou da periferia (vide João Antônio ou Rubem Fonseca).
O que considero mais importante é o processo de escrita, o trabalho de reescrita. Já defendi muitas vezes que a questão pode ser resumida a dois passos:
a) obter um texto, de preferência com alguma preparação (ler, ouvir contar, juntar dados etc.);
b) colocar esse texto num quadro (negro, branco, verde) e reescrever seguidamente, considerando as opiniões dos alunos, para obter diversas versões. Depois, cada um escolhe a sua.
Ler e compreenderUma informação, ou duas: os alunos têm sugestões incríveis, inesperadas, e, além disso, gostam desse tipo de trabalho. Os depoimentos dos professores que dão aulas assim são unânimes.
Vou dar um exemplo. O "dado" que vou analisar foi publicado em um jornal, há mais de dez anos, como evidência de que a escola estava mal. Especialistas disseram, inclusive, que era impossível ler o texto. Está claro que não eram especialistas em nada...
"A violencia começo assim um impresto a borracha para o outro colega ai, u outro perde o a borracha ai o outro falo: daí minha borracha que eu vou usar agora o meu eu perdi o outro falou: se vai da outra. Eu não vou dar não então eu ti pego na hora da saida. aí começo. Ai porrada de lá porrada de cá e assim vai. Aí ou tro tiro arma do bolso e atiro: pro que isso pessoal por causa de uma borracha seis vão brigar."
ErrosA primeira coisa a fazer é ler o texto adequadamente. O que significa "pontuar" (a violência começou assim.). E, por exemplo, pronunciar "emprestou" (ou "imprestô") mas não "imprésto", "começou" (ou "começo"), e não "coméço", "aí" e não "ai", "dá aí" e dão "daí" etc. Se os alunos não sabem escrever, um professor tem que saber ler...
É essencial compreender a natureza dos erros. Alguns podem ser claramente associados à pronúncia corrente (ou dos alunos): impresto, atiro, começo, tiro (emprestou, atirou, etc.). Uma compreensão mínima do texto deixa claro que são formas do passado (imprestô, atirô, começô, tirô) que perderam a semivogal do ditongo final.
O caso que merece, aliás, uma observação: em vez de simplesmente julgar essas formas como desvios, é bom dar-se conta de que são regulares: há sempre queda da semivogal; a vogal permanece; ou seja, não se erra de qualquer jeito, mas segundo uma regra. Além disso, trata-se de pronúncias típicas também de pessoas cultas (basta ver debates na TV). Semelhante a esses erros é o caso de "quere" (querer): a queda do -r final em infinitivos é geral, não só um fenômeno popular.
Há outros erros que são devidos a uma "transcrição" da pronúncia, especialmente se e seis. São variantes populares de você e vocês. Poderiam ter sido escritas ce e ceis, ou até mesmo cê e cês (ou cêis).
CorreçãoHá erros que decorrem evidentemente de tentativas de acertar. Grafar "outro" como se fossem duas palavras (ou tro) é um caso que chama a atenção. O fato de "ou" ser uma palavra (em outros contextos) pode ter influenciado a decisão do aluno. Bastante sugestivo é também outro erro: "perde o" por perdeu, em que se conjugam dois fenômenos:
a) assim como é comum a mudança de o para u, ocorre frequentemente a mudança inversa, u para o (é um caso de hipercorreção);
b) além disso, a forma é tratada como se fosse um verbo seguido de um pronome; é claro que se trata de uma tentativa de escrever corretamente, como se fosse uma forma análoga a "perde-o", "visita-o" etc. Duas coisas são bem claras nesse caso: uma, que é um erro (há até mais de um...); outra, que certamente não se trata de "deficiência" - a não ser de prática, de familiaridade com a escrita.
Casos como "saida", "ai", "sima" e "da" são erros que podem ser classificados como escolha da opção errada entre as possibilidades "legais": troca de c por s e falta de acentuação.
A segunda etapa do trabalho é corrigir esses erros, escrever certo. Claro, coloquem-se as maiúsculas, quando for o caso, sem recitar listas de regras. O segredo é praticar!
O resultado pode ser (entre outros):
"A violência começou assim: um emprestou a borracha para o outro colega. Aí o outro perdeu a borracha. Aí outro falou: - Dá aí minha borracha, que eu vou usar agora. - Ô meu, eu perdi. O outro falou: - Você vai dar outra. - Eu não vou dar não. - Então eu te pego na hora da saída. Aí começou. Aí, porrada de lá, porrada de cá, e assim vai. Aí o outro tirou a arma do bolso e atirou. - Por que isso, pessoal? Por causa de uma borracha vocês vão brigar."
Fazendo isso numa aula, diversas questões de gramática podem ser explicitadas. É um equívoco achar que não se pode tratar de todas ao mesmo tempo. Afinal, aprendemos a falar ouvindo falas completamente misturadas.
Escrever bemOutro passo é melhorar o texto, na direção de escrever "bem". Pode-se reescrevê-lo seguindo certas normas de transcrição de diálogos (travessões etc.), incluindo-se as intervenções do narrador, que organizam a avaliam os fatos. E deixar os passos claros, na prática. Por exemplo:
"A violência começou por causa de uma bobagem. Um menino emprestou a borracha para outro colega, que a perdeu. Num certo momento, o dono da borracha falou:
- Dá aí minha borracha, que eu vou usar agora.
- Ô meu, eu perdi, respondeu o outro.
E a conversa foi ficando mais tensa.
- Você vai ter que me dar outra.
- Eu não vou dar não.
- Se não me der outra, eu te pego na saída.
E então começou a briga. Houve troca de socos e pontapés. Até que um deles tirou uma arma do bolso e atirou. Foi quando interveio uma menina dizendo:
- Por que isso, pessoal? Vocês vão brigar desse jeito por causa de uma borracha?"
"Certinho"
Muitas vezes, a escola se dá por satisfeita quando obtém textos como este, que é apenas "certinho". É claro que este deve ser um dos objetivos. Mas, convenhamos, a briga, com trocas de agressões rápidas, ficou sem graça. Parece um jogo de xadrez (mostrei este trabalho, em certa ocasião, e uma professora fez exatamente este comentário: não parece mais uma briga, um bate-boca).
Acertar menosCompare-se esta escrita com a seguinte. Observe-se especialmente a pontuação e a distribuição gráfica das falas:
"Diga, o que eles querem? Sei lá, eu disse, eu sei, ele falou, eles querem homens como você. Eu tenho acompanhado seu trabalho, meus homens falam muito de você. Fui eu que pedi ao Dr. Carvalho nos apresentar. As pessoas aqui do bairro te adoram e você sabe disso. Os comerciantes te respeitam. A polícia te respeita. As donas de casa te respeitam. E o que você faz, Máiquel? Eu matava pessoas, mas isso eu não disse, fiquei esperando ele responder. Filantropia para a polícia, é isso que você faz. Filantropia, eu repeti, é filantropia, ele disse, só que nesse país não se deve fazer filantropia, cobre sempre, cobre tudo, eu cobro, eu disse, cobra pouco, ele disse, cobra muito pouco, ninguém quer sujar as mãos, ele disse, há um bom mercado, ele disse, um mercado muito bom mesmo, pode-se ganhar muito dinheiro." (Patrícia Melo, O Matador)
O trecho é de um romance. Seria ridículo querer "corrigir" (embora seja bom comentar as opções do texto, para mostrar seu efeito): a conversa perderia totalmente seu ritmo, aspecto que tem tudo a ver com escrever bem.
Às vezes, para conseguir esse bom efeito, é preciso errar um pouco. Ou acertar menos.
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