sábado, 22 de junho de 2013

Pobres palavras...



POBRES PALAVRAS

Lendo um romance, tropecei na palavra inexorável. É uma das que mantenho desconhecidas, desde rapazola quando peguei gosto de ler. Desconhecida porque, mesmo já tendo lido inexorável muitas vezes, nunca quis saber o sentido. Parece uma palavra em desuso, dessas que ficam lá nos velhos armazéns da língua, coberta de poeira, até que alguém pega e coloca numa frase como uma roupa no varal. O leitor é quem recolhe essas roupas, uma por uma, menos as que, como inexorável, a gente não sabe o que é, deixa lá, para que volte sozinha ao armazém e fique lá mofando até que...
Bem, desta vez fiquei com pena da pobre inexorável, fui ao dicionário. E inexorável é implacável [inflexível]. Eu já desconfiava disso, tantas vezes li que o destino é inexorável, e fiquei feliz porque o significado justifica a pompa da palavra. Porque a primeira vez que fui ao dicionário desvendar uma palavra, foi uma inenarrável (olha outra pomposa aí) decepção.
Era a palavra inconsútil. Em prosa e poesia, volta e meia lá vinha a inconsútil. Que diabo será, pensava eu, esperando um dia decifrar o enigma pela própria leitura, tantos inconsúteis se cruzando que produziriam um dia a luz do entendimento. Mas que nada, lá vinha mais e mais inconsútil e menos eu sabia o que seria. Um dia, já na casa dos quarenta, a barba começando a grisalhar, não aguentei mais aquelas três décadas de ignorância e fui ao dicionário. E inconsútil é apenas “sem costura”. Tantos mantos inconsúteis e eu não conseguia ver algo em comum entre eles para achar o sentido da palavra, e eram apenas mantos sem costura... fiquei acabrunhado (esta nem pomposa é, é atrapalhada mesmo).
Outro dia, numa festa, o cartunista Jota disse que sou idiossincrático, que era outras minhas ilustres desconhecidas.
– Mas que é idiossincrático, Jota? Eu não sei.
– Gozador.
Fiquei sem saber se eu era gozador ou se idiossincrático é gozador, o que daria no mesmo. Chegando em casa, fui direto ao dicionário, e continuo sem saber o que é idiossincrático, a não ser que entenda o que é idiossincrasia: “disposição particular do temperamento e constituição, em virtude da qual cada indivíduo sente inversamente os efeitos da mesma causa”. A definição me deixou mais ignorante! Fora isso, só diz que a palavra vem do grego.
Lembro do professor Antônio Rosinski, no Instituto Filadélfia, tentando nos motivar a aprender sufixos e prefixos gregos e latinos. O Velho Antônio era neurótico de guerra e às vezes explodia, dizia que quem gosta de ser burro devia puxar carroça e outras pérolas pedagógicas. Hoje, acho que ele teria muito sucesso apenas dizendo que, sabendo sufixos e prefixos gregos e latinos, a gente pode acertar boa parte das perguntas do Show do Milhão.
Lembro o poeta Glauco Mattoso jantando em minha casa em São Paulo e me dizendo que Glauco vem do grego, significa verde. E Mattoso devia ser português, falei, mas por que o “t” dobrado? Glauco tinha óculos fundo-de-garrafa, perguntou se eu não sabia que ele tinha glaucoma. Não, não sabia.
– Pois é, sou um glaucomatoso – que é como se chama a pessoa com glaucoma. O “t” dobrado é só pra fazer charme.
Tirou da doença o nome artístico. Deve haver alguma palavra pomposa para designar (olha outra) isso. Por conseguinte (mais uma), lembro de inelutável. Esta foi mantida desconhecida com carinho e desvelo, mas acho que chegou a hora, é inevitável saber o que é inelutável. Vou ao dicionário, e inelutável é inevitável. Diante disso, sem querer parecer idiossincrático, e por mais inexorável que pareça, mas tão inelutável como eram inconsúteis os mantos no tempo em que não existia máquina de costura, fico por aqui.
(Pellegrini, Domingos. In: Para Gostar de Ler)

domingo, 16 de junho de 2013

O aluno perfeito...



O aluno perfeito
Rubem Alves

           ERA UMA vez um jovem casal que estava muito feliz. Ela estava grávida, e eles esperavam com grande ansiedade o filho que iria nascer.
          Transcorridos os nove meses de gravidez, ele nasceu. Ela deu à luz um lindo computador! Que felicidade ter um computador como filho! Era o filho que desejavam ter! Por isso eles haviam rezado muito durante toda a gravidez, chegando mesmo a fazer promessas.
         O batizado foi uma festança. Deram-lhe o nome de Memorioso, porque julgavam que uma memória perfeita é o essencial para uma boa educação. Educação é memorização. Crianças com memória perfeita vão bem na escola e não têm problemas para passar no vestibular.
        E foi isso mesmo que aconteceu. Memorioso memorizava tudo que os professores ensinavam. Mas tudo mesmo. E não reclamava. Seus companheiros reclamavam, diziam que aquelas coisas que lhes eram ensinadas não faziam sentido. Suas inteligências recusavam-se a aprender. Tiravam notas ruins. Ficavam de recuperação.
        Isso não acontecia com Memorioso. Ele memorizava com a mesma facilidade a maneira de extrair raiz quadrada, reações químicas, fórmulas de física, acidentes geográficos, populações de países longínquos, datas de eventos históricos, nomes de reis, imperadores, revolucionários, santos, escritores, descobridores, cientistas, palavras novas, regras de gramática, livros inteiros, línguas estrangeiras. Sabia de cor todas as informações sobre o mundo cultural.
        A memória de Memorioso era igual à do personagem do Jorge Luis Borges de nome Funes. Só tirava dez, o que era motivo de grande orgulho para os seus pais. E os outros casais, pais e mães dos colegas de Memorioso, morriam de inveja. Quando filhos chegavam em casa trazendo boletins com notas em vermelho eles gritavam: "por que você não é como o Memorioso?"
        Memorioso foi o primeiro no vestibular. O cursinho que ele frequentara publicou sua fotografia em outdoors. Apareceu na televisão como exemplo a ser seguido por todos os jovens. Na universidade, foi a mesma coisa. Só tirava dez. Chegou, finalmente, o dia tão esperado: a formatura. Memorioso foi o grande herói, elogiado pelos professores. Ganhou medalhas e mesmo uma bolsa para doutoramento no MIT.
       Depois da cerimônia acadêmica foi a festa. E estavam todos felizes no jantar quando uma moça se aproximou de Memorioso e se apresentou: "Sou repórter. Posso lhe fazer uma pergunta?" "Pode fazer", disse Memorioso confiante. Sua memória continha todas as respostas.
Aí ela falou: "De tudo o que você memorizou qual foi aquilo que você mais amou? Que mais prazer lhe deu?"
        Memorioso ficou mudo. Os circuitos de sua memória funcionavam com a velocidade da luz procurando a resposta. Mas aquilo não lhe fora ensinado. Seu rosto ficou vermelho. Começou a suar.       Sua temperatura subiu. E, de repente, seus olhos ficaram muito abertos, parados, e se ouviu um chiado estranho dentro de sua cabeça, enquanto fumaça saia por suas orelhas. Memorioso primeiro travou.                   Deixou de responder a estímulos. Depois apagou, entrou em coma. Levado às pressas para o hospital de computadores, verificaram que seu disco rígido estava irreparavelmente danificado.
       Há perguntas para as quais a memória não tem respostas. É que tais respostas não se encontram na memória. Encontram-se no coração, onde mora a emoção...

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