POBRES PALAVRAS
Lendo um
romance, tropecei na palavra inexorável. É uma das que mantenho desconhecidas,
desde rapazola quando peguei gosto de ler. Desconhecida porque, mesmo já tendo
lido inexorável muitas vezes, nunca quis saber o sentido. Parece uma palavra em
desuso, dessas que ficam lá nos velhos armazéns da língua, coberta de poeira,
até que alguém pega e coloca numa frase como uma roupa no varal. O leitor é
quem recolhe essas roupas, uma por uma, menos as que, como inexorável, a gente
não sabe o que é, deixa lá, para que volte sozinha ao armazém e fique lá
mofando até que...
Bem, desta
vez fiquei com pena da pobre inexorável, fui ao dicionário. E inexorável é
implacável [inflexível]. Eu já desconfiava disso, tantas vezes li que o destino
é inexorável, e fiquei feliz porque o significado justifica a pompa da palavra.
Porque a primeira vez que fui ao dicionário desvendar uma palavra, foi uma
inenarrável (olha outra pomposa aí) decepção.
Era a
palavra inconsútil. Em prosa e poesia, volta e meia lá vinha a inconsútil. Que
diabo será, pensava eu, esperando um dia decifrar o enigma pela própria
leitura, tantos inconsúteis se cruzando que produziriam um dia a luz do
entendimento. Mas que nada, lá vinha mais e mais inconsútil e menos eu sabia o
que seria. Um dia, já na casa dos quarenta, a barba começando a grisalhar, não
aguentei mais aquelas três décadas de ignorância e fui ao dicionário. E
inconsútil é apenas “sem costura”. Tantos mantos inconsúteis e eu não conseguia
ver algo em comum entre eles para achar o sentido da palavra, e eram apenas
mantos sem costura... fiquei acabrunhado (esta nem pomposa é, é atrapalhada
mesmo).
Outro dia,
numa festa, o cartunista Jota disse que sou idiossincrático, que era outras
minhas ilustres desconhecidas.
– Mas que é
idiossincrático, Jota? Eu não sei.
– Gozador.
Fiquei sem
saber se eu era gozador ou se idiossincrático é gozador, o que daria no mesmo.
Chegando em casa, fui direto ao dicionário, e continuo sem saber o que é
idiossincrático, a não ser que entenda o que é idiossincrasia: “disposição
particular do temperamento e constituição, em virtude da qual cada indivíduo
sente inversamente os efeitos da mesma causa”. A definição me deixou mais ignorante!
Fora isso, só diz que a palavra vem do grego.
Lembro do
professor Antônio Rosinski, no Instituto Filadélfia, tentando nos motivar a
aprender sufixos e prefixos gregos e latinos. O Velho Antônio era neurótico de
guerra e às vezes explodia, dizia que quem gosta de ser burro devia puxar
carroça e outras pérolas pedagógicas. Hoje, acho que ele teria muito sucesso
apenas dizendo que, sabendo sufixos e prefixos gregos e latinos, a gente pode
acertar boa parte das perguntas do Show do Milhão.
Lembro o
poeta Glauco Mattoso jantando em minha casa em São Paulo e me dizendo que
Glauco vem do grego, significa verde. E Mattoso devia ser português, falei, mas
por que o “t” dobrado? Glauco tinha óculos fundo-de-garrafa, perguntou se eu
não sabia que ele tinha glaucoma. Não, não sabia.
– Pois é,
sou um glaucomatoso – que é como se chama a pessoa com glaucoma. O “t” dobrado
é só pra fazer charme.
Tirou da
doença o nome artístico. Deve haver alguma palavra pomposa para designar (olha
outra) isso. Por conseguinte (mais uma), lembro de inelutável. Esta foi mantida
desconhecida com carinho e desvelo, mas acho que chegou a hora, é inevitável
saber o que é inelutável. Vou ao dicionário, e inelutável é inevitável. Diante
disso, sem querer parecer idiossincrático, e por mais inexorável que pareça,
mas tão inelutável como eram inconsúteis os mantos no tempo em que não existia
máquina de costura, fico por aqui.
(Pellegrini, Domingos. In: Para
Gostar de Ler)
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