Vivido e apagado
Ferreira Gullar (Folha de São Paulo, 1º de dezembro de 2013)
Quando ouço alguém dizer que vai escrever suas memórias, fico admirado. Não sou capaz. Certa vez, me meti a fazê-lo e me dei mal, porque, do começo mesmo de minha vida, quase não me lembro de nada.
Com razão, o leitor melhor informado pode alegar que escrevi um livro de memórias, "Rabo de Foguete", e é verdade. Mas esse livro conta apenas coisas do meu período de clandestinidade, que vivi no Rio, e os anos de exílio passados em vários países.
Quando o escrevi, em 1998, aquela parte do passado ainda estava viva em mim. Aliás, embora minha memória seja precária, tenho mais facilidade em lembrar da vida adulta do que de meus anos de menino.
E quanto mais distante do presente, pior. De fato, do começo do começo não lembro de coisa alguma. Como disse, ao tentar resgatar esse período de minha vida, vi que não me lembrava de nada ou de quase nada.
Não sei se isso é assim mesmo com todo mundo. Lembro-me do soalho de casa, na rua da Alegria, da janela e da platibanda das casas em frente. Um flash desligado de tudo o mais. Meu quarto escuro, quase sempre fechado. A lembrança mais distante -que não sei se é lembrança ou sonho- é uma cena, numa estrada, um automóvel enguiçado que meu pai dirigia. Era noite e havia luar. Só isso. Mas não lembro se meu pai possuía um automóvel nem que soubesse dirigir.
Outra lembrança está associada a um odor desagradável. Era o odor de um senhor que vendia joias a domicílio -creio que, na verdade, bijuterias, e que, certa tarde, bateu em nossa porta. Minha mãe foi atendê-lo, disse-lhe que entrasse, ele sentou numa cadeira e abriu a sua pequena maleta em cima dos joelhos. Curioso, aproximei-me e senti aquele odor azedo e insuportável que emanava de dentro de seu paletó.
Esse cheiro me marcou tanto que, toda vez que da janela o via passar na rua, tinha vontade de vomitar. Por isso, o associei a um urubu, muito embora nunca tivesse sentido o cheiro dessa ave. Mas um bicho que come carniça só pode cheirar mal.
Lembro-me às vezes das aulas na casa de Dona Elvira. Sua casa era a escola, onde eu, minhas irmãs e outras crianças estudávamos. Dessa casa, não sei por que, fui para a casa de outra professora, na rua dos Prazeres. Só mais tarde, meu pai me matriculou no Colégio São Luís de Gonzaga, o melhor da cidade, onde concluí o curso primário.
Daí, o que mais me lembro, além das orações, são as moscas que voejavam acima de minha cabeça, atraídas pelas feridas que eu tinha ali. Eu as espantava com as mãos, mas elas voltavam.
Daí, o que mais me lembro, além das orações, são as moscas que voejavam acima de minha cabeça, atraídas pelas feridas que eu tinha ali. Eu as espantava com as mãos, mas elas voltavam.
Acredito que a parte de minha vida de que mais lembranças tenho é da quitanda de meu pais, onde passava a maior parte do tempo, quando não ia à escola, ajudando no atendimento aos fregueses, particularmente aqueles que vinham tomar cachaça ou meladinha, mistura de tiquira com mel de abelha.
Mas o bom mesmo eram as conversas do pessoal, como Zé Dedão e o sargento Gonzaga, que saía sempre meio bêbado ao anoitecer. Meu pai participava ativamente da conversaria, e quase sempre fazendo piadas a respeito das histórias que ouvia, dando a entender que era tudo mentira.
Era a época da Segunda Guerra Mundial, em que o Brasil se envolveu. O noticiário, que o rádio transmitia, atraía a atenção de todos. Meu pai ligava o rádio, chamava o pessoal para ouvir as notícias, em meio às descargas da péssima sintonia. Ele afirmava que aquelas descargas eram tiros dos soldados guerreando. Não sei se acreditava no que dizia, se falava a sério ou de gozação. Mas o pessoal acreditava piamente.
Fora essas lembranças, guardei as de nossa casa na rua Celso de Magalhães, quase na Quinta dos Medeiros. Lembro da família à mesa do jantar, as irmãs cochichando e Bizuza resmungando por não se sabe o quê.
Mas particularmente me lembro das saúvas, que se instalaram no chão do quintal. O ninho ficava no fundo da terra, mas elas saíam em fila para buscar recortes de folhas que eram a alimentação da tribo.
Como havia uma lenda de que onde tem formiga tem dinheiro enterrado, convoquei as irmãs para descobrir esse tesouro. Cavamos, cavamos e não achamos nada. Tudo o que me veio dessa trabalheira foi um poema -poema concreto- que é uma evocação daquela aventura infantil.
Ferreira Gullar é cronista, crítico de arte e poeta. Escreve aos domingos na versão impressa de "Ilustrada".
Lembro-me das coisas boas da minha infância, de correr, andar de bicicleta, da vigilância dos meus tios, das brigas de Mainha porque estava descalça (e que iria mandar fazer uma sandália de ferro, para que eu não pudesse sair descalça kkkkk) e eu morria de medo dela cumprir o que dizia kkkkkk Ah! tanta coisa boa...
ResponderExcluirVivido e guardado... kkkkk
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