terça-feira, 20 de abril de 2021

SE EU SOUBESSE LER, ACHO QUE DISTRAÍA MUITO MAIS A MINHA VIDA..."

SE EU SOUBESSE LER, ACHO QUE DISTRAÍA MUITO MAIS A MINHA VIDA..."

Maria das Dores Soares Maziero

Minhas estórias de Carochinha, meu melhor livro de leitura,

capa escura, parda, dura, desenhos preto e branco.

Eu me identificava com as estórias. (1)

 

Ler é sempre uma aventura. Não por acaso, as campanhas de leitura, oficiais ou oficiosas, estão constantemente convidando as pessoas a viver aventuras através de personagens criadas em épocas  diversas. São muitos os roteiros e chamados; pode ser  a possibilidade de nos tornarmos o índio Peri, de O Guarani ou,  modernamente,   Harry Potter e seu mundo de feitiços e magia. 

 O título deste artigo é a fala de uma mulher de 82 anos sobre leitura, mas, como suas palavras revelam, ela nunca leu um livro, já que não é alfabetizada. Curiosamente, porém, suas palavras trazem uma concepção de leitura que é compartilhada por muitas pessoas como a única possível ao se abrir uma obra escrita:aquela que vê no ato de ler um divertimento, um passatempo. Para citar Roland Barthes, é a chamada  leitura de fruição, que vem da época do romance de amor ou de cavalaria.

 Há, porém, um outro tipo de leitura que esteve presente durante a Idade Média:a leitura por obrigação, por provação; fazia parte da vida dos monges assim como o jejum, a vigília e as orações, sendo na  verdade uma privação da fruição. Lia-se como uma forma de aperfeiçoamento, de aprendizado e de aproximação do divino.

 A escola de hoje, especialmente a de ensino médio, se vê confrontada com essas duas concepções de leitura: os alunos querem a leitura do desejo, da fruição, embora nem sempre saibam o que exatamente gostariam de ler; por outro lado, porém,  o trabalho com literatura e a pressão exercida pelos exames vestibulares exigem a leitura dos monges, aquela da obrigação, da privação da fruição, uma vez que o vocabulário  das obras é difícil, distante da realidade dos adolescentes, as situações vividas pelas personagens não correspondem ao que eles (re)conhecem, enfim, é quase impossível descobrir a beleza de Capitu, quando se tem como parâmetro as heroínas do cinema ou dos jogos de computador.

 Este é, portanto, o grande desafio que se impõe à escola hoje: conciliar o ensino da leitura como a prática da “Arte de decifrar e fixar um texto de autor, segundo determinado critério” (2), e, ao mesmo tempo, conseguir levar o aluno-leitor àquela experiência arrebatadora descrita por Clarice Lispector, em seu conto “Felicidade Clandestina”: “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.”

 O desafio está lançado; ao professor, como Odisseu moderno, cabe continuar buscando Ítaca, sabendo que terá que enfrentar no caminho os perigos e desvios representados pelo canto das sereias, pelos encantos de Circe e por monstros vorazes. Quem são esses monstros? Cada mestre deve descobrir/decifrar o nome dos seus, ou então corre o risco de ser devorado por eles.


NOTAS 

(1) CORALINA, Cora. “Meu melhor livro de leitura”, in Vintém de Cobre – meias confissões de Aninha. São Paulo: Global, 1995.

(2) Novo dicionário básico da Língua Portuguesa FOLHA/AURÉLIO. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, l988. 

  A  AUTORA

Maria das Dores Soares Maziero, Mestranda da Faculdade de Educação, UNICAMP

 


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