“Se
fosse brasileiro, estaria indignado com a situação da educação”
António Nóvoa, reitor honorário da Universidade de
Lisboa, comenta a reforma curricular do Ensino Médio brasileiro e aponta novos
modelos de formação docente
THAIS PAIVA
Muito
discurso e pouco compromisso concreto com a melhoria da educação pública.
É com essa crítica que o português António Nóvoa, reitor
honorário da Universidade de Lisboa e candidato às últimas eleições
presidenciais de Portugal, resume sua visão sobre o cenário educacional no
Brasil.
Professor
convidado em Colúmbia (Estados Unidos), Oxford (Inglaterra) e Paris 5 (França),
Nóvoa é hoje uma das principais vozes na área pedagógica e tornou-se uma
referência em formação docente ao propor modelos inovadores como uma espécie de
residência médica para os professores.
Em São
Paulo, onde palestrou no 12ª Prêmio Itaú-Unicef, Nóvoa conversou com Carta
Educação sobre esse modelo, a necessidade de compreender a
educação pública como compromisso social e criticou os equívocos que sustentam
a reforma curricular do Ensino
Médio brasileiro. “O melhor da escola pública está em contrariar
destinos. Podemos ser amanhã uma coisa diferente de que somos hoje. Uma escola
que confirma destinos, que transforma em operário o filho do operário, é a pior
escola do mundo”, resume.
Carta
Educação: O senhor cobra uma maior participação da sociedade na educação
tendo, inclusive, formulado o conceito de espaço público da educação. Como vê
esse cenário de sinergia no Brasil?
António
Nóvoa: Nós temos um discurso muito gongórico, excessivo sobre a importância da
educação, quando as condições básicas não estão sequer asseguradas. Portanto, a
primeira coisa que a sociedade brasileira precisa fazer coletivamente,
independentemente de partidos e políticos, é garantir essas condições básicas
de funcionamento para as escolas, que incluem as condições para o exercício do
trabalho dos professores. Se não fizer isso, todo o resto é conversa, coisas
para ilustrar a mídia, mas que não têm nenhum impacto. Não conseguimos mudar a
educação se isso não for um desígnio coletivo da sociedade. Não pode ser um
problema dos professores ou dos pais ou dos pedagogos ou do partido A ou do
partido B. No Brasil, vejo que há muita conversa, muito discurso, mas pouco
compromisso concreto com a educação pública brasileira. Há pouca indignação e,
se eu fosse brasileiro, estaria indignado com a situação da educação pública.
CE: Essa
falta de indignação não está relacionada ao fato das classes mais abastadas no
Brasil matricularem seus filhos na escola privada, isto é, da educação pública
ser um “problema” das classes mais pobres?
AN: Com
certeza. Para quem vem de fora e olha para o Brasil, esse continua a ser o problema
maior, o da desigualdade. É um raciocínio de vistas estreitas, de quem não
percebe que não resolvemos nossos problemas se não resolvermos o problema dos
outros. E as elites brasileiras são muito separadas do compromisso social.
Fazem umas coisinhas filantrópicas para se justificarem, para fazerem de conta,
mas não têm compromisso social nenhum. Enquanto não houver uma consciência
coletiva de que o problema é de todos, o Brasil não avançará do ponto de vista
da educação pública. Em Portugal, desde a revolução de 74, houve uma espécie de
compromisso do país com a escola pública. Demorou 40 anos para isso acontecer,
mas hoje estamos nos indicadores educacionais acima de países que investiram em
educação quando éramos o último da Europa. Vejamos o Pisa, por exemplo, que é
um indicador que eu não gosto muito, mas que serve para ilustrar. O Pisa tem
dois indicadores: um do qual se fala muito que é classificação dos países, o
ranking de qualidade, e outro do qual não se fala quase nada, que é o indicador
de equidade, isto é, os países que possuem menos desigualdades educacionais.
Portugal vai bem no ranking da classificação, mas, sobretudo, vai melhor no
ranking da equidade. E é isso que torna um país melhor. Enquanto continuar cada
um tratando de si, da escola dos seus filhos, dos seus problemas, o Brasil
estará caminhando para um precipício.
CE: O senhor
diz que o papel do professor é ajudar o aluno a transformar informação em
conhecimento e que o bom profissional é aquele capaz de conseguir com que, no
fim, o aluno goste daquilo que não gostava. Como formar o docente para esses
papéis?
AN: Há
um escritor português, Gonçalo M. Tavares, um dos mais brilhantes da nova
geração, que utiliza uma metáfora muito interessante: “nós somos as imagens que
temos”. O que isso quer dizer? Tudo aquilo que vemos na vida compõe o que
somos. Vou explicar de outra maneira. Ontem, estava aqui em São Paulo e liguei
a televisão. Mudando de canais, vi aquelas imagens, músicas, telejornais
horríveis e pensei que ninguém pode se educar se sua vida é aquilo, aquele
imaginário paupérrimo. Os professores precisam alargar o seu repertório
cultural, terem contato com mais realidades para serem capazes de passar isso
para os seus alunos. Ninguém pode gostar daquilo que não conhece. Se eu não fizer
um esforço para conhecer as regras do xadrez, eu não posso gostar de xadrez.
Uma pessoa que não lê muito, que para ler um texto fica quase a juntar as
letras, dificilmente gostará de leitura. Enquanto as crianças tiverem as
imagens diárias que têm será muito difícil subir o nível da educação. E isso é
verdade para professores e para crianças. Só se pode gostar depois de se
conhecer muito. As crianças fazem isso com os jogos de informática: treinam
muito até ganharem proficiência e, a partir desse momento, começam a ter
prazer. É preciso fazer a mesma coisa com leitura, matemática, história e
biologia. E esse é o trabalho do professor. Agora, para que o professor faça
esse trabalho, ele próprio precisa alargar o seu repertório de imagens.
CE: Esse
parece ser um caminho individual de aperfeiçoamento. Mas no campo da
qualificação formal, o que as universidades poderiam fazer? O senhor já propôs
um esquema semelhante à residência médica para que os docentes aprendessem a
ensinar com outros mais experientes.
AN: Primeiramente,
é preciso ter um lugar para formar os professores nas universidades de forma
unificada. Estou a dar apoio ao reitor da UFRJ, no Rio de Janeiro, para tentar
construir uma coisa que ele designa de “complexo de formação de professores”,
um lugar onde o professor terá sua formação completa. Sobre o esquema de
residência, na formação médica na Universidade de Harvard, por exemplo, nos
primeiros dias do curso, há uma cerimônia na qual os médicos dos hospitais
trazem jalecos e vestem os jovens estudantes de medicina. Quando fazem isso
estão a dizer “a tua formação agora é de nossa responsabilidade, nós agora
vamos te conduzir pelos caminhos da profissão”. E isso vai ajudando a criar uma
rotina, um saber profissional que não é apenas da prática, é um conhecimento
que vai sendo construído na relação entre profissionais mais experientes e
jovens estudantes. É isso que é preciso na formação do professor, que os jovens
das licenciaturas tenham contato com os professores mais antigos, mais
experientes, com professores das faculdades, das universidades. O ideal seria
que quando acabassem a licenciatura fossem para as escolas acompanhados, em uma
espécie de residência docente para que, progressivamente, fossem adquirindo a
autonomia profissional.
CE: Qual
sua opinião sobre a reforma curricular que foi feita no Ensino Médio no Brasil
que inclui o agrupamento por áreas do conhecimento, maior foco no ensino
técnico, permissão para que pessoas com “notório saber” possam dar aulas, entre
outros pontos?
AN: O
mundo inteiro é um cemitério de reformas; reformas curriculares então nem se
fala. É muito fácil fazê-las, o mais difícil é aquilo que falamos no princípio:
dar as coisas básicas e simples, as condições de funcionamento para escolas,
professores. Isso dito, o Ensino Médio foi um problema no mundo todo 20 anos
atrás, período em que os países passaram a educação obrigatória para o final da
etapa. Nesse sentido, o Brasil está bastante defasado. No que diz respeito à
diminuição do currículo, sou sensível ao argumento. Acho que as escolas têm
muitas coisas para ensinar. Desde o século XIX, ninguém tirou nada da escola,
só meteu mais conteúdo. Sou também sensível a um segundo ponto que está na
retórica da reforma que é a ideia dos percursos formativos. São argumentos
importantes no sentido de tornar mais coerente o currículo e, por outro lado,
permitir uma certa diferenciação da trajetória de cada. O problema dessas duas
retóricas é que elas conduzem para três coisas que não estou de acordo e
que, para mim, são as coisas que estão a acontecer no Brasil.
CE: Quais
são elas?
AN: A
primeira coisa é que quando se fala em diminuição do currículo não pode ser
sinônimo da velha ideologia do back to basics, isto é, de
voltar aos fundamentos, dar só matemática e português. Tornar os currículos
mais simples trata-se de conseguir que, em cada uma das matérias, se valorize a
dimensão das linguagens e não a dimensão dos conteúdos. Isto é, que nós
tenhamos os instrumentos para ascender ao conhecimento. Os conteúdos estão
todos disponíveis na internet, em todo lado, logo, o que é preciso adquirir é a
linguagem matemática, científica, da escrita, artística, corporal. Ora, o que
está a acontecer no Brasil agora é o back to basics. Há um livro
agora muito famoso no Brasil chamado Sapiens, do israelense Yuval
Harari, no qual ele diz que hoje temos máquinas de aprendizagem que podem fazer
coisas muito mais inteligentes que os humanos. Então, pela primeira vez na
história, a inteligência não está só do lado dos humanos. Logo, qual é a última
fronteira da humanidade? É a consciência, algo que não pode ser substituído por
nenhuma máquina. E a dimensão da consciência precisa estar presente no
currículo, por isso, não podemos esquecer da história, da sociologia, da
filosofia, tudo que nos dá essa outra dimensão. Minha segunda crítica é a ideia da formação
profissional. Há 20 anos também se falava muito sobre isso e deixou-se de falar
por várias razões, mas há algumas óbvias. A expectativa de vida das pessoas
está a aumentar exponencialmente. Hoje, estamos a aprender a conviver com
quatro gerações ocupando o mesmo espaço – bisavós, avós, pais e filhos. Isso
tem de significante que a entrada na vida adulta vai ser cada vez mais tardia.
Há um século, a expectativa média de vida era 40 anos, logo, a entrada na vida
do trabalho tinha que ser aos 14, 15. Hoje, a média é 80 anos, então a entrada
na vida adulta se faz mais tarde, inevitavelmente. Portanto, falar de uma
formação técnica ou tentar que, hoje, uma pessoa com 14 anos tenha uma relação
com o mundo do trabalho não faz nenhum sentido. Não é essa a evolução da
sociedade: nós queremos pessoas que saibam pensar. Que saibam trabalhar também,
com certeza, mas não é aquela visão que tínhamos antigamente da formação
técnica, do operário. Nos próximos 20 anos, cerca de 30%, 40% dos trabalhos vão
ser feitos pela tecnologia. Portanto, manter hoje essa formação técnica é uma
ideia de discriminação social sobre os pobres. Os percursos formativos, na
prática, mantêm a tradição de que os pobres servem para ser operários e os
ricos, doutores. É o que chamamos de novo vocacionalismo. Agora o melhor da
escola pública está em contrariar destinos. Podemos ser amanhã uma coisa
diferente de que somos hoje. Uma escola que confirma destinos, que transforma
em operário o filho do operário, é a pior escola do mundo.
AN: O
programa Teachers For America, do George Bush, que recrutava
pessoas de notório saber para serem professores foi um desastre porque,
obviamente, ser professor não é ter notório saber em uma matéria, é muito mais
complexo que isso. Tem uma dimensão social, pedagógica, cultural muito mais
ampla. Aliás, há um equívoco enorme que é o de achar que a missão de um
professor de matemática é ensinar matemática. Não é. A missão de um professor
de matemática é formar uma criança através da matemática, o que é completamente
diferente. Porque não se pode ser cidadão sem saber matemática. A cidadania
implica saber matemática, português, história. Ora, não é por termos notório
saber em química que seremos bons professores dessa disciplina. Isso é acabar
com a alma, com a identidade da profissão.
CE: O
senhor foi candidato independente às eleições presidenciais de Portugal de
2016. Como foi a experiência?
AN: Foi
uma experiência extraordinária porque eu não tinha vida política, nunca
pertenci a nenhum partido, mas sempre estive envolvido em causas sociais.
Militei quando era estudante contra a ditadura e sempre estive do lado da
liberdade de pensamento, de crítica, de discordar dos outros. Por volta de
2013, Portugal vivia um momento horrível, com políticas de austeridade absurdas
e um neoliberalismo cego que colocaram o país em uma situação dramática. A essa
altura, era preciso dar um murro na mesa, dizer um basta. Como participei de
grandes manifestações contra a austeridade e tinha acabado de ser reitor da
universidade, isso me deu uma grande visibilidade. Como dizia Martin Luther
King sobre o caráter das pessoas não se mostrar nos tempos fáceis, mas nos
tempos difíceis, entendi que precisava tomar uma posição. E concorrer foi uma
experiência extraordinária pela mobilização que trouxe das pessoas e pelo
resultado. Estive a 1% ou 2% de passar ao segundo turno e se passasse acho que
ganhava. Foi a primeira vez que um candidato independente teve uma candidatura
com envergadura e isso para a política de Portugal foi muito positivo e trouxe
uma renovação. O que está a acontecer em Portugal agora é boa parte do que
defendi em minha candidatura.
CE: O
senhor cogitaria concorrer mais uma vez?
AN: Se
o país continuar tal como está, não tenho nenhuma vontade porque acho que está
muito bom. Nesse momento, apoio o trabalho do atual presidente da república
[Marcelo Rebelo de Sousa]. Mas se o país entrar em uma situação difícil
novamente, voltamos ao Martin Luther King e eu, como um homem de caráter,
preciso me apresentar. Os portugueses sabem que podem contar comigo que eu
estarei lá de novo.