quarta-feira, 21 de novembro de 2012



O RELÓGIO DE OURO
Machado de Assis, Jornal das Famílias, 1873

Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado como ele, do lugar e da situação.
Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem compreender muito nem pouco aos ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto e, os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.
Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram das pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis e, sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros.
Por este motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.
Foi ter com ela.
Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com ar indiferente e tranquilo de quem não pensa em decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dois reluzentes punhais.
– Que tens? Perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar.
Luís Negreiros não respondeu a interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:
– Que tens?
Luís Negreiros parou defronte dela.
– Que é isto? Disse ele, tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lhe diante dos olhos. Que é isto? – repetiu ele com voz de trovão.
Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís negreiros esteve algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em seguida à esposa:
– Vamos, de quem é aquele relógio?
Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:
– Não sei.
Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pode sofrear Luís Negreiros.
Caminhou para ela, e segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:
– Não me responderás demônio? Não me explicaras esse enigma?
Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquele momento, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico.
Clarinha saiu da sala.
Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.
– Onde está a senhora?
– Não sei, não senhor.
Luís Negreiros foi procurar a mulher; achou-a numa saleta de costura, sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros pode ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela; puxou uma cadeira e sentou-se em frente a Clarinha.
– Estou tranquilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?
– Mas então?
– Oh! Não me perguntes nada! exclamou Clarinha. Ignoro como esse relógio se acha ali...
Não sei de quem é... deixa-me.
– É demais! Urrou Luís negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão.
Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e, parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:
– Ó “seu” Luís! Ó “seu” malandrim!
– Ai vem teu pai! Disse Luís Negreiros; logo me pagarás.
Saiu da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo viravoltas com o chapéu-de-sol, com grandes riscos das jarras e do candelabro.
– Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.
– Não, senhor, estávamos conversando...
– Conversando?... Repetiu Meireles.
E acrescentou consigo:
– Estavam de arrufos... é o que há de ser.
– Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.
– Não o convidei?...
– Sim, não fazes anos amanhã?
– Ah! é verdade...
Não havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom descomunalmente alegre:
– Ah! é verdade!...
Meireles, que já por o chapéu num cabide do corredor, voltou-se para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria.
– Está maluco! Disse baixinho Meireles.
– Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles, seguindo pelo corredor, ia ter à sala de jantar.
Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos diante de um espelho:
– Obrigado, disse.
A moça olhou para ele admirada.
– Obrigado, repetiu Luís negreiros, obrigado e perdoa-me.
Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre, repeliu o afago e foi para a sala de jantar.
– Tem razão! murmurou Luís negreiros.
Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa, que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível coisa que era um jantar requentado, - qui ne valut jamais rien.
Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha.
Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha, mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele.
A causa da longa hesitação eram os costumes poucos austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso, mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias, tornou-se um pacato cordeiro.    A amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.
E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do alto mar.
Clarinha amava ternamente o marido e era a mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra, - ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.
– Estão de arrufo, não há dúvida, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. Ou a arrufada é só ela, porque ele pareceu-me lépido.
Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a explicação que reconciliaria os ânimos. Clarinha parecia não deseja-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se lhe do peito um suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos outros dias.
Meireles, sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em casa; sua ideia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.
Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a ideia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
 Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?
Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.
– Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês tiverem do mesmo modo, prometo-lhe que nem a sombra me verão.
– Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.
O jantar acabou assim triste e aborrecido, Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo na ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria a casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.
Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das mãos.
– Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.
– Mas que enigma é este? Perguntava a si mesmo Luís Negreiros. Se não era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?
A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado desde que chegara a casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ela a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses.
Uma ideia má começou a enterrar-se lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou dele um poucos instantes. Luís negreiros era homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter com a mulher.
Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão.
Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.
Houve um momento de silêncio.
Luís Negreiros foi o primeiro que falou.
– Clarinha, disse ele, este momento é solene. Respondes-me ao que te pergunto desde esta tarde?
A moça não respondeu.
– Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.
A moça levantou os ombros.
Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:
– Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
– Espera! Disse ela.
Luís Negreiros recuou.
– Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá; foi o que o portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas.
“Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança. – Tia Iaiá”.
Assim acabou a história do relógio de ouro.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Você consegue entender?

Esta imagem foi publicada na capa da Revista Língua Portuguesa do mês de setembro/2012 da Editora Seguimento.

* A imagem impactou você? Por quê?
* Sem fazer a leitura da reportagem na íntegra, você concorda com a manchete? Por quê?
* E você consegue realmente entender o você lê? Como você consegue identificar se realmente compreendeu a leitura? Tem alguma(s) estratégia(s)?
* Você costuma ler? O quê?

Tentem responder... Será que um dia teremos paz no trânsito?

1 - O que a imagem tenta nos mostrar?
2 - De que forma podemos trazer a ideia da imagem para o nosso cotidiano?
3 - Podemos fazer a diferença no trânsito? Justifique sua respostas.



Seja a mudança

SEJA A MUDANÇA
Denis Russo Burgierman
A frase é de Gandhi: “seja a mudança que você quer ver no mundo”.

Não, não esqueci do que aprendi na faculdade de jornalismo: jamais começar um texto citando Gandhi, Einstein ou Chaplin se você quer ser levado a sério neste mundo cínico. Sim, esse pessoal fala coisas bonitas, mas eles não são “pragmáticos”. São “ingênuos”, desconectados das realidades do mercado, ignorantes das sujeiras da política, sonhadores, poetas, bobocas.
Mas não resisti. Lembrei de Gandhi quando estava lendo um outro autor, Clay Shirky, um teórico dedicado a entender as mudanças que estão acontecendo no mundo hoje em dia (autor do ótimo livro na foto acima). Shirky tem uma tese interessante: a de que, quando uma grande revolução acontece, as velhas estruturas desabam rapidinho, mas demora anos, às vezes décadas, para as novas estruturas surgirem (quando Gutenberg inventou a imprensa, os escribas reclamaram por décadas da baixa qualidade da escrita que isso provocou).
É exatamente isso que está acontecendo hoje em dia. Instituições antigas, aparentemente eternas, estão desabando – os grandes jornais do mundo estão em crise de identidade, a indústria automobilística está tendo que se reinventar, os governos têm que redefinir sua atuação, as profissões mudam todos os dias. Estamos perdidos, sem referências, sem ter no que acreditar. As ideologias do século 20 se transformaram em teorias sem conexão com o mundo real.
Isso é tremendamente angustiante. De repente, tudo aquilo em que acreditávamos está evaporando. O mundo está mudando tão rápido, todos os dias, que fica difícil ter crenças. Fica difícil saber o que é certo e o que é errado. E os cínicos – esse pessoal que adora apedrejar qualquer um que esteja bem intencionado – fazem a festa no meio da confusão.
Mas o fato é que viver no meio de uma revolução, se por um lado é complicado, é também um baita privilégio. Significa que vivemos uma época de construir coisas, de criar, de propor. Não é hora de ser cínico. Não temos tempo para isso. Nossa geração tem um papel fundamental: o de criar as estruturas sobre a qual se assentará nosso novo modelo de sociedade.
Esse trabalho – o de reconstruir o mundo – é um empreendimento coletivo. Nesse mundo de hoje, absurdamente fragmentado, no qual qualquer pessoa tem acesso ao resto do mundo via internet, todos têm um papel – não apenas os políticos, os empresários, os intelectuais, os “líderes”. Todos nós estamos envolvidos no projeto coletivo e inevitável de mudar o mundo.
O mais divertido é que não há cartilha para seguir. Ninguém sabe para onde ir. Depois da queda do muro de Berlim, do colapso do clima e da crise mundial, restou apenas uma certeza: a de que precisamos de um rumo novo. Que rumo é esse? Cabe a cada um de nos propor. O resultado, imprevisível, será a combinação de bilhões de contribuições.
Nosso papel então é imaginar o que queríamos que o mundo fosse e trabalhar para implantar essa visão. No final, certamente o mundo não vai ser como eu quero, ou como você quer. Mas cada um de nós tem a capacidade de empurrar um pouquinho a História para o lado que prefere. Tem gente fazendo isso em tempo integral, trabalhando por uma causa, por uma ideia, por uma inovação, por um projeto. Tem gente fazendo isso de noite, depois de voltar do trabalho. Tem gente fazendo isso nas horas de lazer. Tem gente fazendo isso nas relações pessoais, na vida em família, no bairro, no trânsito.
Tem gente fazendo coisas imensas, importantes, transformadoras. Tem gente colaborando com o pouquinho que está ao seu alcance. Eu, por exemplo, sinto-me bem ao andar de bicicleta em São Paulo porque sei que, estatisticamente, quanto mais bicicletas houver na rua, mais seguro o trânsito será para todos os ciclistas. Temos esse poder: o de alterar a paisagem. Cada novo ciclista na rua melhora a vida dos outros.
É uma contribuição minúscula, mas é isso que nos resta neste mundo, e devíamos ficar satisfeitos. É uma boa notícia. Não há maiores ideologias. Não há maiores autoridades. Só o que há é isso: um conjunto de bilhões de pessoas, cada uma delas modificando um pouquinho a paisagem. Se a maioria de nós ficarmos imobilizadas pela ansiedade e pelo olhar crítico dos cínicos, construiremos pouco. Se cada um fizer seu pouquinho, temos boas chances de ficarmos bem orgulhosos do resultado.

sábado, 25 de fevereiro de 2012


Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com sua letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingan­ça, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de ca­belos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me subme­tia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía as Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro pra se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente cor­rendo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife. Dessa vez nem cai: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nem uma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefini­do, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivi­nhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mes­mo, às vezes eu aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas, houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A se­nhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sem­pre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só pra depois ter o susto de tê-lo. Horas depois o abri, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.

Clarice Lispector

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