O RELÓGIO DE
OURO
Machado de Assis, Jornal das Famílias,
1873
Agora
contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente
novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar
boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem
podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali
estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado como
ele, do lugar e da situação.
Clarinha
não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala,
a folhear um romance, sem compreender muito nem pouco aos ósculo com que o
marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda
que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia
uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher
como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto e, os olhos
no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no
livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.
Luís
Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a
descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram das pessoas
suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros gostava de charadas,
e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas
ou nos jornais. Charadas palpáveis e, sobretudo sem conceito, não as apreciava
Luís Negreiros.
Por
este motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o esposo de
Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabelos,
batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa.
Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís negreiros pegou de novo nos
fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante
algum tempo e refletiu sobre o caso, interrogou todas as suas recordações, e
concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha qualquer
procedimento fora baldado ou precipitado.
Foi
ter com ela.
Clarinha
acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com ar indiferente e tranquilo
de quem não pensa em decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a;
seus olhos pareciam dois reluzentes punhais.
–
Que tens? Perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava
em lhe achar.
Luís
Negreiros não respondeu a interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela;
depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo que a
moça de novo lhe perguntou:
–
Que tens?
Luís
Negreiros parou defronte dela.
–
Que é isto? Disse ele, tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lhe
diante dos olhos. Que é isto? – repetiu ele com voz de trovão.
Clarinha
mordeu os beiços e não respondeu. Luís negreiros esteve algum tempo com o
relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O
silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando
estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em seguida à esposa:
–
Vamos, de quem é aquele relógio?
Clarinha
ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:
–
Não sei.
Luís
Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A mulher
levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pode
sofrear Luís Negreiros.
Caminhou
para ela, e segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:
–
Não me responderás demônio? Não me explicaras esse enigma?
Clarinha
fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam
arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos
pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquele momento, nem se lembrou
disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado,
parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico.
Clarinha
saiu da sala.
Pouco
depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.
–
Onde está a senhora?
–
Não sei, não senhor.
Luís
Negreiros foi procurar a mulher; achou-a numa saleta de costura, sentada numa
cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião
de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros
pode ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele
que a da sala. Luís Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a
dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou
frio para ela; puxou uma cadeira e sentou-se em frente a Clarinha.
–
Estou tranquilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei com a
franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito nada de ti.
Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele relógio. Foi teu pai que o
esqueceu cá?
–
Mas então?
– Oh! Não me perguntes nada! exclamou Clarinha. Ignoro como esse
relógio se acha ali...
Não
sei de quem é... deixa-me.
–
É demais! Urrou Luís negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão.
Clarinha
estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação tornava-se cada vez mais
grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas
órbitas, e, parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os
cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede.
Correu assim cerca de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a
esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:
–
Ó “seu” Luís! Ó “seu” malandrim!
–
Ai vem teu pai! Disse Luís Negreiros; logo me pagarás.
Saiu
da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala,
fazendo viravoltas com o chapéu-de-sol, com grandes riscos das jarras e do
candelabro.
–
Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa
com um grande lenço encarnado.
–
Não, senhor, estávamos conversando...
–
Conversando?... Repetiu Meireles.
E
acrescentou consigo:
–
Estavam de arrufos... é o que há de ser.
–
Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me
convidaste, mas é o mesmo.
–
Não o convidei?...
–
Sim, não fazes anos amanhã?
–
Ah! é verdade...
Não
havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um tom lúgubre,
Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom descomunalmente alegre:
–
Ah! é verdade!...
Meireles,
que já por o chapéu num cabide do corredor, voltou-se para o genro, em cujo
rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria.
–
Está maluco! Disse baixinho Meireles.
–
Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles,
seguindo pelo corredor, ia ter à sala de jantar.
Luís
Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os
cabelos diante de um espelho:
–
Obrigado, disse.
A
moça olhou para ele admirada.
–
Obrigado, repetiu Luís negreiros, obrigado e perdoa-me.
Dizendo
isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre,
repeliu o afago e foi para a sala de jantar.
–
Tem razão! murmurou Luís negreiros.
Daí
a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa, que
Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a respeito
da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda a culpa era
dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração apenas mudou o
assunto do discurso, que versou então sobre a terrível coisa que era um jantar
requentado, - qui ne valut jamais rien.
Meireles
era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo
o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via
correspondida essa afeição de parente e amigo, tanto mais sincera quanto que
Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha.
Durou
o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha, mais de dois em
meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado
antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele.
A
causa da longa hesitação eram os costumes poucos austeros de Luís Negreiros,
não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia
vir a ter depois. Meireles confessava ingenuamente que fora marido pouco
exemplar, e achava que por isso, mesmo devia dar à filha melhor esposo do que
ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros
dias, tornou-se um pacato cordeiro. A
amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das
mais invejadas moças da cidade.
E
era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam
tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo a uma
recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se recolhera a bom
porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do alto mar.
Clarinha
amava ternamente o marido e era a mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos
respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez
do céu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau
destino lhe soprou ali a primeira nuvem?
Durante
o jantar Clarinha não disse palavra, - ou poucas dissera, ainda assim as mais
breves e em tom seco.
–
Estão de arrufo, não há dúvida, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da
filha. Ou a arrufada é só ela, porque ele pareceu-me lépido.
Luís
Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a
mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a
todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a explicação que
reconciliaria os ânimos. Clarinha parecia não deseja-lo; comeu pouco e duas ou
três vezes soltou-se lhe do peito um suspiro.
Já
se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos
outros dias.
Meireles, sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum
grande acontecimento em casa; sua ideia é que sem arrufos não se aprecia a
felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza
da filha sempre lhe punha água na fervura.
Quando
veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros
aceitou a ideia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.
Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com
um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e
preocupada. Que tens?
Clarinha
não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a
resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.
–
Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês
tiverem do mesmo modo, prometo-lhe que nem a sombra me verão.
–
Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que
desatou a chorar.
O
jantar acabou assim triste e aborrecido, Meireles pediu ao genro que lhe
explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo na ocasião oportuna.
Pouco
depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os
achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria a casa deles, e que se havia coisa
pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma
valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.
Clarinha
fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela.
Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís
Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das mãos.
–
Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu
pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o
relógio era um presente de anos que tu me fazias.
Não
me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé
quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem
compreender nada. A moça não disse uma nem duas; saiu do quarto e deixou o
infeliz consorte mais admirado que nunca.
–
Mas que enigma é este? Perguntava a si mesmo Luís Negreiros. Se não era um mimo
de anos, que explicação pode ter o tal relógio?
A
situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir
tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente
no caso e assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito
recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado desde
que chegara a casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e
buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela
tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ela a foi abraçar na sala de
costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no
momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à
mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência
do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.
Luís
Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das
hipóteses.
Uma
ideia má começou a enterrar-se lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão
fundo penetrou, que se apoderou dele um poucos instantes. Luís negreiros era
homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do
gabinete e foi ter com a mulher.
Clarinha
recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas
da noite. A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha
os olhos fitos no chão.
Nem
os levantou quando sentiu entrar o marido.
Houve
um momento de silêncio.
Luís
Negreiros foi o primeiro que falou.
–
Clarinha, disse ele, este momento é solene. Respondes-me ao que te pergunto
desde esta tarde?
A
moça não respondeu.
–
Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.
A
moça levantou os ombros.
Uma
nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao
colo da esposa e rugiu:
–
Responde, demônio, ou morres!
Clarinha
soltou um grito.
–
Espera! Disse ela.
Luís
Negreiros recuou.
–
Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu
escritório já te não achou lá; foi o que o portador me disse.
Luís
Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas.
“Meu
nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança. – Tia Iaiá”.
Assim
acabou a história do relógio de ouro.
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