Da arte brasileira de ler o que
não está escrito
Cláudio
de Moura e Castro
Terminando os poucos anos de
escola oferecidos em seu vilarejo nas montanhas do Líbano, o jovem Wadi Haddad
foi mandado para Beirute para continuar sua educação. Ao vê-lo ausente de casa
por um par de anos, a vizinha aproximou-se cautelosa de sua mãe, jurou sua
amizade à família e perguntou se havia algum problema com o rapaz. Se todos os
coleguinhas aprenderam a ler, por que ele continuava na escola? Anos depois,
Wadi organizou a famosa Conferência de Jontiem, “Educação para todos”, mas isso
é outro assunto.
Para a vizinha libanesa, há os
que sabem ler e há os que não sabem. Não lhe ocorre que há níveis diferentes de
compreensão. Mas infelizmente temos todos o vício de subestimar as dificuldades
na arte de ler, ou, melhor, na arte de entender o que foi lido. Saiu da escola,
sabe ler.
O ensaio de hoje é sobre cartas
que recebi dos leitores de VEJA, algumas generosas, outras iradas. Não tento
debater críticas, pois minhas farpas
atingem também cartas elogiosas. Falo da arte da leitura.
É preocupante ver a liberdade
com que alguns leitores interpretam os textos. Muitos se rebelam com o que eu
não disse (jamais defendi o sistema de saúde americano). Outros comentam
opiniões que não expressei e nem tenho (não sou contra a universidade pública
ou a pesquisa).
Há os que adivinham as
entrelinhas, ignorando as linhas. Indignam-se com o que acham que eu quis
dizer, e não com o que eu disse. Alguns decretam que o autor é horrendo
neoliberal e decidem que ele pensa assim ou assado sobre o assunto, mesmo que o
texto diga o contrário.
Não generalizo sobre as
epístolas recebidas – algumas de lógica modelar. Tampouco é errado ou
condenável passar a ilações sobre o autor ou sobre as consequências do que está
dizendo. Mas nada disso pode passar por cima do que está escrito e da sua
lógica. Meus ensaios têm colimado assuntos candentes e controvertidos. Sem uma
correta participação da opinião pública educada, dificilmente nos
encaminharemos para uma solução. Mas a discussão só avança se a lógica não for
afogada pela indignação.
Vale a pena ilustrar esse tipo
de leitura com os comentários a um ensaio sobre nosso sistema de saúde (abril
de 1997). A essência do ensaio era a inviabilidade econômica e fiscal do
sistema preconizado pela Constituição. Lantejoulas e meandros à parte, o ensaio
afirmava que a operação de um sistema da saúde gratuito, integral e universal
consumiria uma fração do PIB que, de tão alta (até 40%), seria de implantação
inverossímil.
Ninguém é obrigado a aceitar
essa afirmativa. Mas a lógica impõe quais são as possibilidades de discordar.
Para destruir os argumentos, ou se mostra que é viável gastar 40% do PIB com
saúde ou é necessário demonstrar que as contas que fiz com André Medici estão
erradas números equivocados, erros de conta, hipóteses falsas, há muitas fontes
possíveis de erro. Mas a lógica do ensaio faz com que só se possa rebatê-lo nos
seus próprios termos, isto é, nas contas.
Curiosamente, grande parte das
cartas recebidas passou por cima desse imperativo lógico. Fui xingado de
malvado e desalmado por uns. Outros fuzilaram o que inferem ser minha
ideologia. Os que gostaram crucificaram as autoridades por negar aos
necessitados acesso à saúde (igualmente equivocados, pois o ensaio critica as
regras e não as inevitáveis consequências de sua aplicação).
Meus comentaristas escrevem
corretamente, não pecam contra a ortografia, as crases comparecem assiduamente
e a sintaxe não é imolada. Contudo, alguns não sabem ler. Sua imaginação
criativa não se detém sobre a lógica aborrecida do texto. É a vitória da
semiótica sobre a semântica.
Respostas do texto
ResponderExcluirPreciso das respostas do texto
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