terça-feira, 27 de novembro de 2012

Ler? Para quê? Por quê?



Da arte brasileira de ler o que não está escrito

Cláudio de Moura e Castro

                Terminando os poucos anos de escola oferecidos em seu vilarejo nas montanhas do Líbano, o jovem Wadi Haddad foi mandado para Beirute para continuar sua educação. Ao vê-lo ausente de casa por um par de anos, a vizinha aproximou-se cautelosa de sua mãe, jurou sua amizade à família e perguntou se havia algum problema com o rapaz. Se todos os coleguinhas aprenderam a ler, por que ele continuava na escola? Anos depois, Wadi organizou a famosa Conferência de Jontiem, “Educação para todos”, mas isso é outro assunto.
                Para a vizinha libanesa, há os que sabem ler e há os que não sabem. Não lhe ocorre que há níveis diferentes de compreensão. Mas infelizmente temos todos o vício de subestimar as dificuldades na arte de ler, ou, melhor, na arte de entender o que foi lido. Saiu da escola, sabe ler.
                O ensaio de hoje é sobre cartas que recebi dos leitores de VEJA, algumas generosas, outras iradas. Não tento debater críticas,  pois minhas farpas atingem também cartas elogiosas. Falo da arte da leitura.
                É preocupante ver a liberdade com que alguns leitores interpretam os textos. Muitos se rebelam com o que eu não disse (jamais defendi o sistema de saúde americano). Outros comentam opiniões que não expressei e nem tenho (não sou contra a universidade pública ou a pesquisa).
                Há os que adivinham as entrelinhas, ignorando as linhas. Indignam-se com o que acham que eu quis dizer, e não com o que eu disse. Alguns decretam que o autor é horrendo neoliberal e decidem que ele pensa assim ou assado sobre o assunto, mesmo que o texto diga o contrário.
                Não generalizo sobre as epístolas recebidas – algumas de lógica modelar. Tampouco é errado ou condenável passar a ilações sobre o autor ou sobre as consequências do que está dizendo. Mas nada disso pode passar por cima do que está escrito e da sua lógica. Meus ensaios têm colimado assuntos candentes e controvertidos. Sem uma correta participação da opinião pública educada, dificilmente nos encaminharemos para uma solução. Mas a discussão só avança se a lógica não for afogada pela indignação.
                Vale a pena ilustrar esse tipo de leitura com os comentários a um ensaio sobre nosso sistema de saúde (abril de 1997). A essência do ensaio era a inviabilidade econômica e fiscal do sistema preconizado pela Constituição. Lantejoulas e meandros à parte, o ensaio afirmava que a operação de um sistema da saúde gratuito, integral e universal consumiria uma fração do PIB que, de tão alta (até 40%), seria de implantação inverossímil.
                Ninguém é obrigado a aceitar essa afirmativa. Mas a lógica impõe quais são as possibilidades de discordar. Para destruir os argumentos, ou se mostra que é viável gastar 40% do PIB com saúde ou é necessário demonstrar que as contas que fiz com André Medici estão erradas números equivocados, erros de conta, hipóteses falsas, há muitas fontes possíveis de erro. Mas a lógica do ensaio faz com que só se possa rebatê-lo nos seus próprios termos, isto é, nas contas.
                Curiosamente, grande parte das cartas recebidas passou por cima desse imperativo lógico. Fui xingado de malvado e desalmado por uns. Outros fuzilaram o que inferem ser minha ideologia. Os que gostaram crucificaram as autoridades por negar aos necessitados acesso à saúde (igualmente equivocados, pois o ensaio critica as regras e não as inevitáveis consequências de sua aplicação).
                Meus comentaristas escrevem corretamente, não pecam contra a ortografia, as crases comparecem assiduamente e a sintaxe não é imolada. Contudo, alguns não sabem ler. Sua imaginação criativa não se detém sobre a lógica aborrecida do texto. É a vitória da semiótica sobre a semântica.

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