SE A TERRA NÃO EXISTISSE, A GENTE PISAVA ONDE?
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ênis é de lona e
borracha. Cueca é de pano e elástico. Caderno é de arame e folha de papel.
Televisão é de plástico com uma antena em cima e uma tela na frente.
Casa é feita de telhado, parede,
piso, porta e janela. Vaca é de couro, chifre e quatro tetas pingando leite.
Cachorro é um ônibus peludo cheio de pulgas. Ser humano é feito de carne, osso,
coração e idéias na cabeça.
E o mundo em que vivemos?
O mundo é um monte de terra cercada
de água por todos os lados.
A água é o mar, o rio, o lago, a
chuva, a poça, a lágrima e o cuspe.
A terra é a terra mesmo.
Tem gente que pensa que terra só
serve para cavar buraco no chão, para ser hotel de minhoca, para enfiar poste
de luz ou então para sujar o pé de lama em dia de chuva, mas não é nada disso.
Se não fosse a terra, a gente pisava
onde?
Se não fosse a terra, a gente
construía nossa casa onde?
E as cidades? E as estradas? E os
campinhos de futebol?
Sem a terra a gente não ia jogar
bola nunca mais!
Uma vez eu tive um sonho. Sonhei que
estava dormindo com vontade de fazer xixi. Continuei sonhando e pulei da cama.
Pobre de mim! Quando pisei no chão, descobri que naquele sonho não existia
chão. Lá fui eu caindo, despencando, voando, esvoaçando. O mundo ali era um
lugar sem terra, por isso tudo vivia boiando no ar. Saí do quarto, fui
voejando, passei pela sala cheia de cadeiras, móveis e mesas voando e cheguei
no banheiro. Lá dentro, o chuveiro, a pia e a privada pareciam umas coisas
brancas flutuando no espaço. Fui tentar fazer xixi, mas a privada não parava
quieta. A vontade apertava cada vez mais. Tentei fazer pontaria, caprichei na
mira, mas não deu. No fim, o sonho acabou. Acordei todo molhado com meu irmão,
lá embaixo, gritando socorro. Acontece que a gente dorme em cama beliche, eu em
cima e ele embaixo.
Meu irmão me xingou de tudo quanto
foi nome. Expliquei a ele que se fosse a terra firme o beliche estaria voando e
aí, sim, ia ser muito pior.
Pensando bem, a terra é a coisa mais
importante do mundo em que vivemos. Ele é o solo, o chão, a gleba, o piso, o
porto, o lugar onde a gente fica em pé e constrói a vida.
Para falar a verdade, a terra é uma
espécie de mãe. A mãe de todos nós.
De onde vêm as árvores para dar
sombra e segurança? Da terra.
De onde vêm as frutas para a gente
chupar? Da terra.
De onde vem a nascente do rio? E a
flor? E o passarinho? E a onça? E a tartaruga? E a borboleta? E o macaco? E o
besourinho? E todos os bichos do mundo inteiro menos os peixes e as
estrelas-do-mar?
Sem a terra, não ia ter nem milho,
laranja, caqui, jabuticaba, banana, pêra, uva, cacau, pitanga, mexerica, romã,
maçã, abacate, melancia, abacaxi, nem amendoim nem nada.
O mundo ia ser só um monte de coisa
nenhuma cercado de água para todos os lados.
Mas a terra tem seus truques. Ela não
gosta de ser maltratada, não senhor!
Quando fazem queimadas ou destroem o
mato ou enchem o chão de lixo e porcaria
a terra fica triste vira deserto, corpo árido, seco, estéril, que não dá mais
nada.
Ela, que era generosa, formosa,
úmida, florida, risonha, fofa, macia, fértil, cheia de sombra, cheia de
perfume, cheia de riachinhos, borboletas, besourinhos, bichinhos e bichões, de
repente fica tão dura e rachada que só consegue inventar pó, areia e desolação.
Se a terra fosse um deserto ia ter
chão, mas como a gente ia ficar?
Conto de Ricardo Azevedo