Os bolsos do morto
Luis Fernando Verissimo
O morto não é exatamente um amigo. Mais um
conhecido, mas daqueles que você não pode deixar de ir ao velório. E lá está
ele, estendido dentro do caixão forrado de cetim, de terno azul-marinho e
gravata grená, esperando para ser enterrado.
Se fosse um amigo você ficaria em silêncio, compungido, lembrando o morto em vida e lamentando sua perda. Como é apenas um conhecido, você comenta com o homem ao seu lado – que também não parece ser íntimo do morto:
– Poderiam ter escolhido outra gravata...
– É. Essa está brava.
– Já pensou ele chegando lá com essa gravata?
– “Lá” onde?
– Não sei. Onde a gente vai depois de morto. Onde vai a nossa alma.
– Eu acho que a alma não vai de gravata.
– Será que não? E de fatiota?
– Também não. – Bom. Pelo menos esse vexame ele não vai passar.
– Você é da família? – Não. Apenas um conhecido.
Você examina o morto. Engraçado: ele vai partir para a viagem mais importante, e mais distante, da sua vida, mas não precisa carregar nada. Identidade, passaporte, nada. Nem dinheiro, o que dirá cheques de viagem ou cartões de crédito. Nem carteira!
Você diz para o outro:
– A coisa mais triste de um defunto são os bolsos.
O outro estranha. – Como assim?
– Os bolsos existem para ele carregar coisas. Coisas importantes, que definem a sua vida. CPF, licença para dirigir, bloco de notas, caneta, talão de cheques, remédio pra pressão...
– Pepsamar.
– Pepsamar, cartão perfurado da sena, recortes de artigos sobre a situação econômica, fio dental... Isso sem falar em coisas com importância apenas sentimental. Por exemplo: um desenho rabiscado por uma possível neta que parece, vagamente, um gato, e que ele achou genial e guardou. Entende?
– Sei...
– E aí está ele. Com os bolsos vazios. Despido da vida e de tudo que levava nos seus bolsos, e que o definia. O homem é o homem e o que ele leva nos bolsos. Poderiam ter deixado, sei lá, pelo menos um chaveiro.
– Você acha?
– Claro. As chaves da casa. As chaves do carro. Qualquer coisa pessoal, que pelo menos fizesse barulho num bolso da fatiota, pô!
Você se dá conta de que está gritando. As pessoas se viram para reprová-lo. “Mais respeito”, dizem as caras viradas. Você faz um gesto, pedindo perdão. Sou apenas um conhecido, desculpem. Mas continua, falando mais baixo:
– A morte é um assaltante. Nos mata e nos esvazia os bolsos.
– Sem piedade. – Nenhuma.
Se fosse um amigo você ficaria em silêncio, compungido, lembrando o morto em vida e lamentando sua perda. Como é apenas um conhecido, você comenta com o homem ao seu lado – que também não parece ser íntimo do morto:
– Poderiam ter escolhido outra gravata...
– É. Essa está brava.
– Já pensou ele chegando lá com essa gravata?
– “Lá” onde?
– Não sei. Onde a gente vai depois de morto. Onde vai a nossa alma.
– Eu acho que a alma não vai de gravata.
– Será que não? E de fatiota?
– Também não. – Bom. Pelo menos esse vexame ele não vai passar.
– Você é da família? – Não. Apenas um conhecido.
Você examina o morto. Engraçado: ele vai partir para a viagem mais importante, e mais distante, da sua vida, mas não precisa carregar nada. Identidade, passaporte, nada. Nem dinheiro, o que dirá cheques de viagem ou cartões de crédito. Nem carteira!
Você diz para o outro:
– A coisa mais triste de um defunto são os bolsos.
O outro estranha. – Como assim?
– Os bolsos existem para ele carregar coisas. Coisas importantes, que definem a sua vida. CPF, licença para dirigir, bloco de notas, caneta, talão de cheques, remédio pra pressão...
– Pepsamar.
– Pepsamar, cartão perfurado da sena, recortes de artigos sobre a situação econômica, fio dental... Isso sem falar em coisas com importância apenas sentimental. Por exemplo: um desenho rabiscado por uma possível neta que parece, vagamente, um gato, e que ele achou genial e guardou. Entende?
– Sei...
– E aí está ele. Com os bolsos vazios. Despido da vida e de tudo que levava nos seus bolsos, e que o definia. O homem é o homem e o que ele leva nos bolsos. Poderiam ter deixado, sei lá, pelo menos um chaveiro.
– Você acha?
– Claro. As chaves da casa. As chaves do carro. Qualquer coisa pessoal, que pelo menos fizesse barulho num bolso da fatiota, pô!
Você se dá conta de que está gritando. As pessoas se viram para reprová-lo. “Mais respeito”, dizem as caras viradas. Você faz um gesto, pedindo perdão. Sou apenas um conhecido, desculpem. Mas continua, falando mais baixo:
– A morte é um assaltante. Nos mata e nos esvazia os bolsos.
– Sem piedade. – Nenhuma.
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