O
assédio e a violência de gênero
O assédio contra mulheres em transportes coletivos reafirma o espaço
público como reprodutor da violência de gênero
CARLA CRISTINA GARCIA
O primeiro deles foi
a divulgação da pesquisa Chega de Fiu Fiu – Uma campanha contra o assédio sexual em espaço público,
organizada pelo site Think Olga, em
2013.
Foram entrevistadas 7.762 mulheres, e 99,6% delas
declararam já ter sofrido algum tipo de assédio sexual nesses ambientes.
Alguns números
revelados pela pesquisa Chega de Fiu Fiu
dão a dimensão do cenário vivido pelas mulheres nos espaços públicos. Aqui
destacamos alguns que servirão de embasamento para a discussão no decorrer do
texto.
Uma das perguntas
era: “Onde você já recebeu cantada?”; 98% responderam na rua; 64% no transporte
público (guarde este número), 33% no trabalho, 77% na balada, e 80% em parques,
shoppings e cinemas (na pesquisa as entrevistadas puderam escolher mais uma de
opção).
Na sequência, a
pesquisa perguntou: “Você acha que ouvir cantada é legal?”; 83% disseram não,
17% responderam sim. Ou seja, a imensa maioria das mulheres não gosta de ouvir
cantadas quando caminham pelas ruas.
Esse dado revela
outro, assustador: 81% das entrevistadas revelaram já ter deixado de fazer
alguma coisa por medo de serem assediadas pelos homens.
E mais triste ainda:
90% das participantes revelaram que já deixaram de usar roupa decotada por medo
de sofrer algum tipo de assédio.
Esse resultado da
pesquisa Chega de Fiu Fiu nos remete
ao estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Aplicadas (Ipea), cujos dados,
após a correção de um erro na divulgação do estudo, mostram que cerca de 26%
dos entrevistados declararam que “mulheres com roupa curta merecem ser
atacadas”.
Trata-se de um
número assombroso, pois representa um quarto da população brasileira.
Logo, 50 milhões de pessoas debitam nas mulheres a
culpa pelos assédios sexuais sofridos nos espaços públicos.
Ainda de acordo com
a pesquisa, 58,5% dos entrevistados acreditam que “se as mulheres soubessem se
comportar, haveria menos estupro”.
Portanto, se a
mulher é cantada na rua, assediada no transporte público e, no caso mais grave,
estuprada a culpa é dela. Os números de ambas as pesquisas são ainda mais
terríveis quando pensamos no contexto político em torno das políticas às
mulheres nos últimos 15 anos.
As mulheres serem vítimas de assédio sexual no
transporte não é novidade
O assunto,
porém, ganhou repercussão nacional quando os meios de comunicação noticiaram
uma série de casos ocorridos no metrô de São Paulo.
Segundo dados da
Secretaria de Segurança Pública do Estado, cem mulheres fizeram denúncias em
2013, após serem vítimas de assédio sexual em ônibus, metrô e trens da capital
paulista.
Em 2014, já foram registrados 26 casos de abuso sexual no metrô
paulistano, oito homens foram presos por causa de tal crime.
Em reportagem
veiculada em programa televisivo, Adriana Barbosa, vítima de abuso sexual no
metrô de São Paulo, relatou o ocorrido: o homem a seguiu e, dentro do vagão, a
encurralou e a apalpou em suas partes íntimas. Quando as portas do vagão se
abriram, Adriana começou a gritar e os seguranças conseguiram prender o
abusador.
De acordo
com a reportagem, dos 26 homens que foram presos acusados de assediar
sexualmente de mulheres, apenas um permanece preso.
As denúncias e
reportagens sobre assédios sexuais no transporte público fizeram com que a
presidenta Dilma Rousseff utilizasse o seu perfil no Twitter para pedir às mulheres que não tenham medo e denunciem tais
casos.
“A ação de
criminosos que assediam e abusam de mulheres em ônibus, trens e metrôs
envergonha a nossa sociedade. Venho pedir às vítimas que não se intimidem em
denunciar. E às polícias que não se omitam em combater a prática. O Brasil de
hoje não comporta mais qualquer tipo de violência contra a mulher”, declarou.
Outra reação foi realizada pelo coletivo feminista Mulheres em Luta, que
no dia 4 de abril distribuíram alfinetes para que as mulheres utilizassem
contra os “encostadores” do metrô.
O kit de defesa
continha, além do objeto pontiagudo, a mensagem lema da campanha: “Não me
encosta que eu não te furo”. As organizadoras do ato alegaram que a ação visava
dar o “mínimo de condições para que as mulheres se protejam em casos de abuso”.
A punição resolve?
Nas várias
reportagens veiculadas, especialistas no assunto disseram que a lei para os
casos de assédio sexual necessita de um flagrante. Quando não há, as vítimas
precisam de testemunhas para levar o caso à frente. Do outro lado, as vítimas
afirmam serem desencorajadas, quando vão à delegacia, a levar a denúncia
adiante.
Elas são informadas
de que “não vai dar em nada”. Além de pertencer à nossa cultura machista, tal
orientação faz com que milhares de mulheres vítimas de assédio sexual se calem,
o que tornam os registros da violência imprecisos.
É óbvio que as leis
devem ser mais rígidas para casos como esses, mas devemos levantar a seguinte
questão: apenas focar na centralidade de um regime punitivo vai resolver a
questão do assédio sexual do qual são vítimas as mulheres nos espaços públicos?
Podemos encaminhar a nossa resposta a partir do exemplo da Lei Maria da Penha.
Promulgada
em 2006, a lei registrou um aumento de 600% de denúncias feitas por mulheres
por causa de violência física e sexual, de acordo com dados do Disque 100 do
governo federal.
No entanto,
infelizmente a divulgação da lei e os inúmeros dispositivos judiciais para
ajudar às vítimas não colaboraram para o retrocesso do registro do número de
casos de violência contra a mulher.
Pelo contrário: a
cada cinco minutos, uma mulher é vítima de violência física, de acordo com o
Mapa da Violência 2012 – Homicídio de mulheres no Brasil.
Um novo projeto de sociedade
Para além de uma radicalização do sistema punitivo, é necessário pensar na estrutura que promova esses dados macabros sobre violência contra as mulheres.
Para além de uma radicalização do sistema punitivo, é necessário pensar na estrutura que promova esses dados macabros sobre violência contra as mulheres.
Enquanto a questão
ficar centrada no âmbito jurídico/punitivo, pouco ou nada vai mudar.
É necessário pensar mecanismos que desmontem o paradigma patriarcal e
machista predominante na estrutura familiar e escolar.
Sim, o
projeto pedagógico vigente no Brasil é todo ancorado em valores familistas e
reprodutores, que enxergam a mulher não enquanto sujeito, mas como máquina de
fazer filhos.
Assim, alimenta-se que toda mulher está disponível para homens, sendo
seu corpo um espaço público.
Eis aí a importância
da chamada feminista: “Nossos corpos, nossas regras”.
Neste momento em que
o debate está posto, ocorre no Congresso Nacional uma discussão de suma
importância à construção de novas mentalidades no Brasil.
O Plano Nacional de
Educação (PNE), com metas que deveriam estar vigente de 2010 a 2020, traz em
sua base estrutural a erradicação de todas as formas de preconceito (sexual, de
gênero, racial e de orientação sexual). Ou seja, se aprovado, a erradicação do
preconceito de gênero vai passar a fazer parte da grade curricular da educação
brasileira, um avanço fundamental de combate ao machismo e ao sexismo.
Quando adolescentes
entram em contato com uma pedagogia que visa desconstruir velhos preconceitos,
novos sujeitos daí surgirão. Porém, como tudo aquilo que visa derrubar o
sistema patriarcal, o PNE 2014 desencadeou uma guerra entre setores
progressistas e fundamentalistas e corre risco de ser desfigurado.
Além de um novo
projeto pedagógico, uma sociedade não sexista também pressupõe outra
comunicação, principalmente quando pensamos nas telenovelas, em que o destino
das personagens femininas é sempre a maternidade, reforçando a velha ideia de
que mulheres só são plenas quando casadas e mães.
Pressupõe que as
mulheres ocupem o espaço legislativo (elas são 9% no Congresso Nacional); que
superemos o conceito de gênero e sua divisão positivista; que a ideia de
profissão masculina e feminina seja banida e assim sucessivamente…
Para que a ideia
masculina segundo a qual o corpo da mulher é um espaço público seja superada, é
necessário invertemos (destruir?) toda a lógica na qual estamos inseridas, em
que tudo aquilo que se aproxima do feminino é tratado como abjeto (vide homens
afeminados, travestis e transexuais).
E aí vale a pena
resgatar a nossa velha amiga Simone de Beauvoir.
Em 1947, em
seu livro O Segundo Sexo, ela afirma que as mulheres não existem e não passam
de uma construção social a partir do prisma masculinista.
O conceito de mulher
e de homem são dois instrumentos políticos de poder que atua sob os corpos a
partir de seus órgãos genitais e, a partir daí, define os papéis de gênero na
sociedade ocidental.
Esse percurso final
pode parecer um tanto absurdo e radical, mas não é. Absurdo e diabólico é o
cotidiano das mulheres abusadas dentro do metrô e no transporte público como um
todo (sem contar os outros espaços públicos). Este sim deve ser um incômodo
constante contra o qual devemos lutar para que seja eliminado. A libertação da
mulher é também a libertação de todo o resto da sociedade.
*Carla Cristina Garcia é doutora em Ciências Sociais e professora do Departamento de Sociologia da PUC-SP
*Carla Cristina Garcia é doutora em Ciências Sociais e professora do Departamento de Sociologia da PUC-SP
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