sexta-feira, 10 de julho de 2020

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‘Cidadão não, engenheiro’: elites e autoritarismo no Brasil
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz fala ao ‘Nexo’ sobre a fraca concepção de cidadania que domina parte da sociedade brasileira
Juliana Domingos de Lima
07 de jul de 2020

O programa Fantástico, da rede Globo, exibiu no domingo (5) uma reportagem sobre a inspeção de bares e restaurantes, estabelecimentos que voltaram a funcionar com restrições no Rio de Janeiro em 2 de junho, após três meses fechados devido à pandemia do novo coronavírus. Os fiscais da Vigilância Sanitária monitoram o cumprimento das medidas de segurança contra a covid-19, condição para que os locais possam permanecer abertos.
Uma interação entre um casal e um fiscal da Prefeitura do Rio ocorrida na noite de sábado (4) e incluída na reportagem chamou a atenção. Sem máscara, na calçada de um restaurante na Barra da Tijuca, zona oeste da cidade, um homem e uma mulher tentaram intimidar o fiscal Flávio Graça, superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância Sanitária, Fiscalização e Controle de Zoonoses da prefeitura.
O cliente questionava a fiscalização, filmando o fiscal com um celular. Quando Graça se dirigiu ao homem chamando-se de “cidadão”, ouviu da mulher que o acompanhava: “Cidadão não. Engenheiro civil formado, melhor do que você”. Ela também diz ao fiscal que “a gente é que paga você, filho”, enquanto seu companheiro pede para “falar com o chefe” do servidor.
O caso ganhou repercussão e levou à demissão da mulher que aparece na filmagem pela empresa privada do setor de energia onde trabalhava, a Taesa. Na segunda-feira (6), a companhia emitiu uma nota na qual declara compartilhar da “indignação da sociedade em relação a este lamentável episódio”.
Uma reportagem do jornal O Globo publicada na segunda-feira (6) revelou que o engenheiro civil solicitou e recebeu uma parcela do auxílio emergencial de R$600, pago pelo governo federal a trabalhadores vulneráveis durante a pandemia. Uma das regras para ter direito ao benefício é ter renda familiar inferior a três salários mínimos (cerca de R$ 3.135).
A flexibilização da quarentena no Rio de Janeiro tem sido marcada pelo desrespeito às medidas impostas pela prefeitura para reduzir o risco de disseminação do novo coronavírus: receber apenas metade da capacidade de público, manter uma distância pelo menos dois metros entre as mesas, encerrar o expediente até as 23h e usar máscara, obrigatória por lei no estado. É permitido tirá-la somente no momento das refeições.
No primeiro dia de reabertura, o que se viu principalmente nas ruas do Leblon, bairro nobre da capital fluminense, foram aglomerações de pessoas sem máscara e o funcionamento de estabelecimentos para além do horário permitido.
A atitude dos frequentadores desses locais, assim como o episódio de intimidação do fiscal, são vistos pela historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz como parte de uma tradição que remonta à formação do país: a de pessoas de lugares sociais privilegiados se considerarem acima da lei.
Schwarcz é professora da USP, global scholar em Princeton e colunista do Nexo. Autora de livros como “Sobre o autoritarismo brasileiro”, ela falou ao Nexo na terça-feira (7) sobre os significados da frase dita ao fiscal no Rio, a raiz histórica desse tipo de comportamento e a noção de cidadania no país.
O que o episódio do casal que insultou um fiscal no Rio diz sobre as relações no Brasil?
LILIA SCHWARCZ Há uma classe média muito intolerante, que não respeita o Estado, que acha que está acima do Estado. A frase ‘cidadão não, engenheiro civil formado’ é muito reveladora sobre esse tipo de concepção de que o Estado é casa própria.
Ela é muito semelhante a uma espécie de ritual nacional, como diz um artigo clássico do [antropólogo brasileiro] Roberto da Matta, que é o ‘você sabe com quem está falando?’. Supostamente uma pergunta, ela é na verdade uma afirmação que devolve o lugar social [de quem a utiliza]. Ela diz ‘você é menos do que eu sou’.
Ao afirmar que o marido dela era engenheiro, a senhora quis dizer ao fiscal que o marido dela era superior – social, cultural e moralmente – ao fiscal que desempenhava o seu papel.
Você vê uma relação entre o privilégio e a desigualdade social no país?
LILIA SCHWARCZ Eu não acho que a frase fala da nossa desigualdade – fala lateralmente, mas ela diz muito mais da nossa concepção frouxa de cidadania. A cidadania é feita de direitos e deveres para o bem comum. Um engenheiro tem o mesmo dever para o bem comum, que é o Estado, do que um fiscal. Mas a desigualdade produz muita intolerância. Esse nosso déficit educacional produz um Estado pouco democrático. Então acho que fala mais da nossa democracia frouxa e incompleta.
Qual a origem histórica desse tipo de comportamento? Por que ele se perpetua?
LILIA SCHWARCZ O Brasil foi criado sob o signo da escravidão. Criou-se um país em que uma vasta parte da população tem que obedecer e uma minoria vai mandar. Nesse modelo colonial, poucos tinham poder sobre tudo e se acostumaram a ser os grandes mandões locais. Esse tipo de poder se perpetuou na Primeira República com os coronéis, que eram os grandes caciques locais, mandavam nas eleições, no voto, na vida, na morte.
E se perpetua nesse momento também, em que nós elegemos a maior ‘bancada dos parentes’ na Câmara, por exemplo. Essa bancada é composta por pessoas que pretendem se eternizar no poder. Pretendem criar locais de poder e de privilégio que são definitivos, absolutamente eternos, e que não passariam pelo escrutínio do Estado, do direito, da cidadania. Aquela frase revela muito da conformação autoritária da sociedade brasileira.
Qual a relação entre essa conduta de indivíduos e o autoritarismo da sociedade brasileira?
LILIA SCHWARCZ Foi um gesto autoritário daquela senhora. Ela pretendeu desmerecer uma pessoa que cumpria sua função fazendo referência a uma profissão que, no Brasil, sempre foi muito valorizada. Não é à toa que ela falou engenheiro. No Brasil, as famílias ricas nos séculos 19 e 20 destinavam uma pessoa para a medicina, outra para a engenharia e outra para a Igreja. O engenheiro sempre teve um diploma de doutor aqui no Brasil e, como diz Lima Barreto em ‘Os Bruzundangas’, doutor é um passaporte definitivo, você nem diz doutor em quê. Então ela está usando desse velho vocabulário social brasileiro.
Por que pessoas que ocupam uma posição mais elevada na hierarquia social tendem a crer que há regras que não se aplicam a elas?
LILIA SCHWARCZ Há um provérbio que já existia no Brasil colonial: ‘aqui, quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é barão. Quem rouba mais e esconde chega logo a visconde’. É a ideia de que a lei não é para todos, a lei é só para o seu inimigo. Para os seus amigos, nada.
Essa é exatamente a circunstância. Como eu estou lá com os meus amigos, essa lei de evitar aglomerações, essa lei da máscara, diz respeito aos outros, não a mim, que sou uma pessoa de elite, que não preciso desse tipo de marca, ‘cidadão’.
É impressionante essa ideia de que a lei, as instituições e a cidadania são para os outros, para os que são ‘menos’, enquanto os mais privilegiados não precisam de nada disso. É uma concepção pífia de Estado, e que tem a ver com esse nosso governo atual, com o nosso presidente que não usa máscara, que incentiva aglomeração, que fala que a covid-19 é uma gripezinha.
Me preocupa muito não só o que o presidente acha, mas o que ele avaliza. Esse tipo de atitude tem muito do aval do nosso presidente.
Não é à toa que o engenheiro se define [em seus perfis nas redes sociais] como uma pessoa conservadora. O que é ser conservador? É conservar a covid-19? [risos] Ele quer conservar a pandemia? Vamos conservar tudo agora, a pobreza, a desigualdade e a pandemia também.
O que é cidadania? Como essa crença na própria excepcionalidade se choca com ela?
LILIA SCHWARCZ O termo ‘cidadania’ veio da ideia de morador das cidades. Num ambiente teoricamente mais horizontal do que o de um feudo, de uma grande propriedade, era preciso construir leis iguais para todos. É suposto que o Estado se baseie no conceito de universalidade de bens e deveres.
No Brasil, com a existência desses grandes senhores, em geral homens e brancos, cria-se uma concepção muito frouxa – esse conceito vem do [historiador] Sérgio Buarque de Holanda – não só do Estado como das instituições, dos partidos e, com isso, da nossa cidadania.
Lá em 1936, Sérgio Buarque de Holanda já falava: essa concepção frouxa fará com que o Brasil não chegue à modernidade. Esse alerta nos ajuda a pensar nesses episódios porque, de fato, parte da população brasileira acredita que está além da lei, muito além, e, portanto, não precisa segui-la.
Me impressiona como no Brasil a negação de uma série de valores que pareciam incontestáveis agora parece ser sinônimo de autenticidade e de privilégio – essa ideia de desconhecer as minorias, de dizer que é mesmo machista, que é mesmo contra gays. Isso virou uma espécie de troféu particular e dentro desse vagalhão vai também a concepção de cidadania. Ou seja, a reação dessa senhora é muito sintomática da maneira como esse tipo de brasileiro de classe média compreende a sua nação. As regras, as limitações servem para os outros, para os pobres. A pessoa não se enxerga dentro desse todo, não faz parte. O conceito de nacionalidade tem muitos problemas, mas um ponto positivo dele é justamente a criação de uma comunidade de afeto, como diz o [cientista político e historiador americano] Benedict Anderson. Essas pessoas que vão aparecendo agora, avalizadas pelo presidente e por esse tipo de governo, não têm qualquer afeto desse tipo.

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