‘Cidadão
não, engenheiro’: elites e autoritarismo no Brasil
A
historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz fala ao ‘Nexo’ sobre a fraca
concepção de cidadania que domina parte da sociedade brasileira
Juliana
Domingos de Lima
07 de jul
de 2020
O programa Fantástico, da rede Globo, exibiu no
domingo (5) uma reportagem sobre a inspeção de bares e restaurantes,
estabelecimentos que voltaram a funcionar com restrições no Rio de Janeiro em 2 de
junho, após três meses fechados devido à pandemia do novo coronavírus. Os
fiscais da Vigilância Sanitária monitoram o cumprimento das medidas de
segurança contra a covid-19, condição para que os locais possam permanecer
abertos.
Uma interação entre um casal e um fiscal da
Prefeitura do Rio ocorrida na noite de sábado (4) e incluída na reportagem
chamou a atenção. Sem máscara, na calçada de um restaurante na Barra da Tijuca,
zona oeste da cidade, um homem e uma mulher tentaram intimidar o fiscal Flávio
Graça, superintendente de Inovação, Pesquisa e Educação em Vigilância
Sanitária, Fiscalização e Controle de Zoonoses da prefeitura.
O cliente questionava a fiscalização, filmando o
fiscal com um celular. Quando Graça se dirigiu ao homem chamando-se de
“cidadão”, ouviu da mulher que o acompanhava: “Cidadão não. Engenheiro civil
formado, melhor do que você”. Ela também diz ao fiscal que “a gente é que paga
você, filho”, enquanto seu companheiro pede para “falar com o chefe” do
servidor.
O caso ganhou repercussão e levou à demissão da mulher que aparece na
filmagem pela empresa privada do setor de energia onde trabalhava, a Taesa. Na
segunda-feira (6), a companhia emitiu uma nota na qual declara
compartilhar da “indignação da sociedade em relação a este lamentável
episódio”.
Uma reportagem do jornal O Globo publicada na
segunda-feira (6) revelou que o engenheiro civil solicitou e recebeu uma parcela do auxílio
emergencial de
R$600, pago pelo governo federal a trabalhadores vulneráveis durante a
pandemia. Uma das regras para ter direito ao benefício é ter renda familiar
inferior a três salários mínimos (cerca de R$ 3.135).
A flexibilização da quarentena no Rio de Janeiro
tem sido marcada pelo desrespeito às medidas impostas pela prefeitura para
reduzir o risco de disseminação do novo coronavírus: receber apenas metade da
capacidade de público, manter uma distância pelo menos dois metros entre as
mesas, encerrar o expediente até as 23h e usar máscara, obrigatória por lei no estado. É permitido tirá-la somente no
momento das refeições.
No primeiro dia de reabertura, o que se viu principalmente nas ruas do
Leblon, bairro
nobre da capital fluminense, foram aglomerações de pessoas sem máscara e o
funcionamento de estabelecimentos para além do horário permitido.
A atitude dos frequentadores desses locais, assim
como o episódio de intimidação do fiscal, são vistos pela historiadora e
antropóloga Lilia Schwarcz como parte de uma tradição que remonta à formação do
país: a de pessoas de lugares sociais privilegiados se considerarem acima da
lei.
Schwarcz é professora da USP, global scholar em
Princeton e colunista do Nexo. Autora de livros como “Sobre o
autoritarismo brasileiro”, ela falou ao Nexo na terça-feira
(7) sobre os significados da frase dita ao fiscal no Rio, a raiz histórica
desse tipo de comportamento e a noção de cidadania no país.
O que o episódio do casal que
insultou um fiscal no Rio diz sobre as relações no Brasil?
LILIA SCHWARCZ Há uma classe média muito
intolerante, que não respeita o Estado, que acha que está acima do Estado. A
frase ‘cidadão não, engenheiro civil formado’ é muito reveladora
sobre esse tipo de concepção de que o Estado é casa própria.
Ela é muito semelhante a uma espécie de ritual
nacional, como diz um artigo clássico do [antropólogo brasileiro] Roberto da
Matta, que é o ‘você sabe com quem está falando?’. Supostamente uma pergunta,
ela é na verdade uma afirmação que devolve o lugar social [de quem a utiliza].
Ela diz ‘você é menos do que eu sou’.
Ao afirmar que o marido dela era engenheiro, a
senhora quis dizer ao fiscal que o marido dela era superior – social, cultural
e moralmente – ao fiscal que desempenhava o seu papel.
Você vê uma relação entre o
privilégio e a desigualdade social no país?
LILIA SCHWARCZ Eu não acho que a frase fala da
nossa desigualdade – fala lateralmente, mas ela diz muito mais da nossa
concepção frouxa de cidadania. A cidadania é feita de direitos e deveres para o
bem comum. Um engenheiro tem o mesmo dever para o bem comum, que é o Estado, do
que um fiscal. Mas a desigualdade produz muita intolerância. Esse nosso déficit
educacional produz um Estado pouco democrático. Então acho que fala mais da
nossa democracia frouxa e incompleta.
Qual a origem histórica desse
tipo de comportamento? Por que ele se perpetua?
LILIA SCHWARCZ O Brasil foi criado sob o signo
da escravidão. Criou-se um país em que uma vasta parte da população tem que
obedecer e uma minoria vai mandar. Nesse modelo colonial, poucos tinham poder
sobre tudo e se acostumaram a ser os grandes mandões locais. Esse tipo de poder
se perpetuou na Primeira República com os coronéis, que eram os grandes
caciques locais, mandavam nas eleições, no voto, na vida, na morte.
E se perpetua nesse momento também, em que nós
elegemos a maior ‘bancada dos parentes’ na Câmara, por exemplo. Essa bancada é
composta por pessoas que pretendem se eternizar no poder. Pretendem criar
locais de poder e de privilégio que são definitivos, absolutamente eternos, e
que não passariam pelo escrutínio do Estado, do direito, da cidadania. Aquela
frase revela muito da conformação autoritária da sociedade brasileira.
Qual a relação entre essa conduta
de indivíduos e o autoritarismo da sociedade brasileira?
LILIA SCHWARCZ Foi um gesto autoritário daquela
senhora. Ela pretendeu desmerecer uma pessoa que cumpria sua função fazendo
referência a uma profissão que, no Brasil, sempre foi muito valorizada. Não é à
toa que ela falou engenheiro. No Brasil, as famílias ricas nos séculos 19 e 20
destinavam uma pessoa para a medicina, outra para a engenharia e outra para a
Igreja. O engenheiro sempre teve um diploma de doutor aqui no Brasil e, como
diz Lima Barreto em ‘Os Bruzundangas’, doutor é um passaporte definitivo,
você nem diz doutor em quê. Então ela está usando desse velho vocabulário
social brasileiro.
Por que pessoas que ocupam uma
posição mais elevada na hierarquia social tendem a crer que há regras que não
se aplicam a elas?
LILIA SCHWARCZ Há um provérbio que já existia no
Brasil colonial: ‘aqui, quem rouba pouco é ladrão, quem rouba muito é
barão. Quem rouba mais e esconde chega logo a visconde’. É a ideia de que a lei
não é para todos, a lei é só para o seu inimigo. Para os seus amigos, nada.
Essa é exatamente a circunstância. Como eu estou lá
com os meus amigos, essa lei de evitar aglomerações, essa lei da máscara, diz
respeito aos outros, não a mim, que sou uma pessoa de elite, que não preciso
desse tipo de marca, ‘cidadão’.
É impressionante essa ideia de que a lei, as
instituições e a cidadania são para os outros, para os que são ‘menos’,
enquanto os mais privilegiados não precisam de nada disso. É uma concepção
pífia de Estado, e que tem a ver com esse nosso governo atual, com o nosso
presidente que não usa máscara, que incentiva aglomeração, que fala que a
covid-19 é uma gripezinha.
Me preocupa muito não só o que o presidente acha,
mas o que ele avaliza. Esse tipo de atitude tem muito do aval do nosso
presidente.
Não é à toa que o engenheiro se define [em seus
perfis nas redes sociais] como uma pessoa conservadora. O que é ser conservador? É
conservar a covid-19? [risos] Ele quer conservar a pandemia? Vamos conservar
tudo agora, a pobreza, a desigualdade e a pandemia também.
O que é cidadania? Como essa
crença na própria excepcionalidade se choca com ela?
LILIA SCHWARCZ O termo ‘cidadania’ veio da ideia
de morador das cidades. Num ambiente teoricamente mais horizontal do que o de
um feudo, de uma grande propriedade, era preciso construir leis iguais para
todos. É suposto que o Estado se baseie no conceito de universalidade de bens e
deveres.
No Brasil, com a existência desses grandes
senhores, em geral homens e brancos, cria-se uma concepção muito frouxa – esse
conceito vem do [historiador] Sérgio Buarque de Holanda – não só do Estado como
das instituições, dos partidos e, com isso, da nossa cidadania.
Lá em 1936, Sérgio Buarque de Holanda já falava:
essa concepção frouxa fará com que o Brasil não chegue à modernidade. Esse
alerta nos ajuda a pensar nesses episódios porque, de fato, parte da população
brasileira acredita que está além da lei, muito além, e, portanto, não precisa
segui-la.
Me impressiona como no Brasil a negação de uma
série de valores que pareciam incontestáveis agora parece ser sinônimo de
autenticidade e de privilégio – essa ideia de desconhecer as minorias, de dizer
que é mesmo machista, que é mesmo contra gays. Isso virou uma espécie de troféu
particular e dentro desse vagalhão vai também a concepção de cidadania. Ou
seja, a reação dessa senhora é muito sintomática da maneira como esse tipo de
brasileiro de classe média compreende a sua nação. As regras, as limitações
servem para os outros, para os pobres. A pessoa não se enxerga dentro desse
todo, não faz parte. O conceito de nacionalidade tem muitos problemas, mas um
ponto positivo dele é justamente a criação de uma comunidade de afeto, como diz
o [cientista político e historiador americano] Benedict Anderson. Essas pessoas
que vão aparecendo agora, avalizadas pelo presidente e por esse tipo de
governo, não têm qualquer afeto desse tipo.
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